Tudo começa em casa

Tudo começa em casa

O título deste breve texto em comemoração ao Dia Internacional da Família, celebrado em 15 de maio, é uma homenagem ao pediatra e psicanalista Donald Winnicott. Seu legado contém inúmeras publicações sobre a importância que a família tem no processo de amadurecimento de um indivíduo, incluindo o livro homônimo Tudo começa em casa. 1

Para esse importante autor, a família é a base estruturante da condição de um indivíduo se tornar uma pessoa, com condições plenas de se socializar e manter relações de respeito e consideração com um outro.

Em sua teoria do desenvolvimento emocional primitivo, o bebê nasce em um estado físico e psíquico de absoluta dependência, sem nenhuma condição de sobrevivência sem que um adulto totalmente disponível possa se ocupar de seus cuidados essenciais. O bebê, nesse primeiro estágio, experimenta a sensação de estar aos pedaços, como se seu corpo não fosse uma unidade. A angústia é de desamparo e somente os braços de um cuidador que possa se identificar com suas necessidades, vai permitir que ele viva a experiência de estar contido por uma pele.

Em geral é a mãe quem ocupa essa função e se dedica plenamente ao bebê durante os primeiros meses de vida. Ela precisa estar muito perto e atenta, numa relação quase fusional, tal a adaptação que estabelece com ele, que inclui um estado de regressão aos seus próprios registros inconscientes de ter sido um bebê.

De acordo com Winnicott, a mãe no último mês de gestação e durante o puerpério adquire uma condição especial para essa função, a preocupação materna primária, que é um estado de regressão e identificação com o bebê, quase como uma “doença”. Uma doença saudável de mães saudáveis.

Porém, se a mãe ocupa um lugar protagonista junto ao bebê, só pode exercer plenamente essa função e entrar nesse estado mental primitivo se houver um suporte que a sustente também. É essa a tarefa do pai ou de alguém que ocupe esse lugar de função paterna.

Refiro-me à função de guardião do ambiente mãe-bebê, para que ele tenha um mínimo de desconfortos. O estado emocional do bebê é de extrema fragilidade e não pode sofrer grandes abalos, que nessa fase representam ameaças à sua existência psíquica. Portanto, esse terceiro, que é o pai ou substituto, precisa cuidar do ambiente e do suprimento para quem se ocupa do bebê na função mãe.

Toda essa configuração vai mudando à medida que o bebê cresce e vai adquirindo condições mais estruturadas de lidar com desconfortos, dores, frustrações e, principalmente, com a ausência gradativa da mãe.

Essa mudança de etapa e readaptação do ambiente familiar às novas necessidades do bebê é o que vai construindo a condição para o indivíduo se desenvolver plenamente e alcançar o estágio de independência.

Na primeira infância, independência significa autonomias básicas de andar, comer, dormir em seu quarto e cama, separar-se dos pais por períodos maiores.

A mesma estrutura desse modelo que vemos durante os dois primeiros anos de vida da criança vai se repetir ao longo de sua vida e permitir que na idade adulta esse filho possa sair de casa e construir sua própria vida adulta e uma nova família.

A família é a base e o modelo fundamental para que cada indivíduo seja um “sujeito”, com plenas condições de se relacionar com seus grupos e desenvolver relações de intimidade. Quando algo não vai bem nas relações familiares, há um comprometimento nessas condições de desenvolvimento das crianças, complicando também seus futuros descendentes.

É a estabilidade familiar que oferece o continente seguro para a saúde de seus membros. Isso não significa que não existam conflitos, que são parte de uma vida saudável. Nos conflitos familiares, a criança e o adolescente aprendem a se relacionar e desenvolver ferramentas de articulação com um outro. É preciso aprender a lidar com frustrações, ceder, negociar, atender às demandas da realidade e não apenas das expectativas pessoais. Adultos saudáveis e responsáveis podem ser os pilares de uma organização familiar que favoreça o desenvolvimento contínuo de seus membros. O grupo familiar então serve de base para as relações nos grupos mais amplos da sociedade.

Conhecemos algumas das razões que fazem essa longa e exigente tarefa – o trabalho dos pais de compreender os filhos – valer a pena! E, de fato, acreditamos que esse trabalho provê a única base real para a sociedade, sendo o único fator para a tendência democrática do sistema social de um país.2 (Winnicott, 1986 – pág. 98)

A vivência dos conflitos familiares oferece a possibilidade de lidar internamente com emoções intensas e transbordantes em um ambiente seguro e amoroso. Para tanto, é fundamental que os pais possam ser capazes de sustentar as leis que organizam o convívio grupal e ajudar os filhos na experiência da frustração que deriva dos limites que a realidade impõe aos desejos individuais.

Atualmente há um equívoco no que tange à educação dos filhos, que é a ideia de que os pais devam buscar um mínimo de incômodo aos filhos, evitando a todo custo expressões de tristeza, dor, raiva, tomadas como emoções “negativas”. Com essa premissa, temos cada vez mais crianças e jovens que não desenvolvem condições de lidar com a realidade e seus infortúnios. Isso pode gerar um sentimento de vazio e impotência, contribuindo para várias patologias, como a depressão, que pode até levar ao suicídio.

A depressão não é necessariamente negativa, como muito bem desenvolveu Winnicott em seu artigo O valor da depressão. Paradoxalmente, esse estado pode ser a condição de um processo de desenvolvimento, desde que possa ser vivido e superado dentro de um ambiente que acolha e suporte as dores que nele estão contidas. A família é uma referência para isso. Se a pessoa que sofre pode contar com um sentimento amoroso de sustentação, a depressão pode evoluir para um processo de cura, como afirmou Winnicott.3

Muito poderia ser ainda desenvolvido sobre o valor da estrutura familiar para o desenvolvimento saudável de uma pessoa, mas o assunto de tão rico e vasto não pode se esgotar em tão poucas linhas. Fica então a mensagem central dessa importância e o necessário olhar para que a sociedade contribua para o trabalho fundamental do qual cabe à família se ocupar.

Saiba mais:

  1. Winnicott D. Tudo começa em casa, 1996, Editora Martins Fontes.
  2. Winnicott D. A contribuição da mãe para a sociedade. In: Tudo começa em casa, 1996, Editora Martins Fontes.
  3. Winnicott D. O valor da depressão. In: Tudo começa em casa, 1996, Editora Martins Fontes.

 

Relatora:
Denise de Sousa Feliciano
Presidente do Núcleo de Estudos de Saúde Mental da Sociedade de Pediatria de São Paulo