Um problema dos tempos modernos? Infelizmente não… Na história da Pediatria mundial e brasileira, são muitos os exemplos da pouca atenção que as crianças sempre tiveram e, assim como os idosos, são parte da sociedade que precisa de cuidados e não tem atividade produtiva evidente… O problema começa já por aí… Desde os impérios grego e romano, passando pela idade média, pela revolução francesa, encontramos exemplos muito tristes de abandono de crianças e altíssima mortalidade infantil.
Porém, nos tempos atuais, houve uma mudança importante, pois aquilo que às vezes era considerado como terceirização da sociedade, do Estado, com falta de escolas, creches, leis protetoras, e incentivo ao lazer, passou também a ser visto no ambiente micro familiar, onde crianças nem sempre podem ser cuidadas adequadamente por seus pais e seus parentes mais próximos (avós, tias, etc.)
Quando uma família em que pai e mãe trabalham e saem de casa às 6 horas da manhã e voltam às vezes depois das 20 horas, as crianças ficam dependendo de outras pessoas para serem atendidas em suas necessidades. Quando um bebê é desmamado precocemente, porque a nossa legislação ainda dá apenas 4 meses de licença maternidade, quando uma mãe de classe alta, por problemas profissionais ou por que não pode ou não deseja assumir seu filho, contrata uma babá que, não apenas a auxilia, mas a substitui , estamos diante de uma terceirização importante com todos os riscos e possíveis consequências biopsicosociais que podem acometer as crianças e que muitas vezes as acompanham pelo resto da vida.
A situação do mundo moderno levou as pessoas a terem filhos, mas sem conseguirem tempo para cuidar dos mesmos. As consequências e as probabilidades de problemas são vistos em muitos trabalhos científicos que mostram a necessidade fundamental da presença materna e paterna nos primeiros meses e anos de vida das crianças.
Essa nova discussão e projeto de se estudar atentamente os chamados primeiros 1000 dias de vida do ser humano, incluindo-se aí a gestação e os dois primeiros anos de vida trouxe muitos conhecimentos importantes que acabam por modificar a relação infantil com a família.
Eu chego, diante da minha vivência pediátrica, a falar que é melhor não se ter um filho do que o tendo, não cuidar dele, não ficar perto, não aconchegar, não acalentar, não lhe dar o carinho e atenção fundamentais para seu bom desenvolvimento e prevenindo possíveis mazelas que podem ocorrer na infância e, infelizmente, até na idade adulta.
A nossa legislação para a licença maternidade está muito ultrapassada e necessita de revisão urgente. São raras as empresas comerciais ou industriais que permitem a licença maternidade de 6 meses e, o que é pior, as creches nos locais de trabalho, previstas na lei, não existem, a não ser raramente. No regimento da CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas) está clara a determinação da existência de creche em todas as empresas que têm mulheres empregadas. Mas isso não acontece. E pior, os próprios sindicatos de trabalhadores aceitam o engodo, que é um valor, muitas vezes irrisório, para as mães, pagarem uma creche, longe do local do trabalho. Assim, os filhos não podem ficar próximos às mães e acaba não acontecendo o cuidado adequado num local onde seria mantido o fundamental vínculo e relacionamento cuidadoso, permitindo a presença constante e a amamentação.
A prática de mandar crianças para as creches aos 4 meses de idade no nosso país é um desastre, porque é um momento crucial na vida dessas crianças, não só do importante ponto de vista emocional, do vínculo, da amamentação, mas, como garantem os imunologistas, das defesas dessas crianças contra infecções, pois nesse período o bebê está numa fase de diminuição da carga protetora imunológica que recebeu da mãe e seu sistema imune ainda não está apto a produzir anticorpos e usar todos os mecanismos protetores, que vão aparecer lentamente, alguns apenas depois de um ano. É por esse motivo que a maioria das crianças, quando entram precocemente nas creches, começam a apresentar febres de repetição, diarreias, resfriados etc., ou seja, são submetidos à carga de vírus e bactérias que existem no meio ambiente, mas num período em que não estão preparadas para se defender adequadamente.
Eu sempre afirmo que o ideal mesmo é que as crianças possam ficar até os dois anos de idade em sua casa, na sua família, de preferência perto da mãe e, após os 2 anos vão começar a se socializar e entrar em contato com outras pessoas de forma mais intensa e mais aberta mas, infelizmente , isso não está acontecendo.
Em dois livros de minha autoria, “A criança terceirizada. Os descaminhos das relações familiares no mundo contemporâneo” e “Quem cuidará das crianças? A difícil tarefa de educar os filhos hoje”, abordo um tema doloroso – é o que muitos pesquisadores da infância chamam da Gênese da Violência Urbana.
É algo difícil de colocar sem deixar muitas pessoas com culpa, mas não é essa minha intenção. Eu não sou advogado de acusação, promotor ou juiz de pais e mães. Eu me considero advogado de defesa das crianças. Porém, não dá para negar que evidências muito claras apontam para a violência associada, não só a injustiça social e a pobreza, mas, também ao abandono, ao desamor, à falta de família. Muitos dos criminosos mais violentos e cruéis não puderam chamar ninguém de mãe, não tiveram carinho e atenção na infância, principalmente nos primeiros anos de vida. Sociólogos e antropólogos descrevem a associação entre infância violenta e estar numa prisão. É algo muito complexo, mas que não podemos deixar de ver, sentir e avaliar.
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Relator:
Dr. José Martins Filho
Presidente da Academia Brasileira de Pediatria
Publicado em 17/03/2014.
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