Super Safe: Engasgo Líquido

Super Safe: Engasgo Líquido

Texto divulgado em 21/11/24


Não se sabe ao certo quando se iniciou o uso da manobra de desobstrução de corpo estranho (CE) para menores de 1 ano (erroneamente chamada de Heimlich) nos engasgos líquidos. Talvez a confusão tenha ocorrido quando menores de 1 ano apresentavam sinais graves de obstrução de vias aéreas, e pela cena não ter sido presenciada e não havendo como identificar a natureza do corpo estranho, esta estaria indicada.

Para entender melhor por que não se deve utilizar a manobra de desobstrução de corpo estranho para sólidos em engasgo líquido, vamos relembrar o que ocorre quando há aspiração de corpo estranho sólido.

 

Aspiração de corpo estranho sólido

A via aérea pode ser obstruída por objeto sólido em qualquer ponto entre a faringe e os brônquios. A obstrução na laringe, acima das cordas vocais, responde melhor às manobras de desobstrução do que as abaixo da laringe, o que frequentemente necessita de remoção por instrumentação. O grau de obstrução também é crucial, pois uma obstrução parcial ainda permitirá a passagem de ar e pode fornecer tempo adicional antes que o paciente se torne hipóxico.

 

Figura 1: O que pode acontecer quando há uma aspiração de corpo estranho sólido

 

 

a) Fase aguda: início abrupto de dispneia, tosse, estridor, palidez, sudorese, cianose. Os sintomas dependerão do local em que o corpo estranho se alojou e do grau de obstrução que ocorreu. Se a criança estiver tossindo (mecanismo fisiológico que aumenta a pressão nas vias aéreas, na tentativa de eliminar o corpo estranho), não se deve mexer na mesma. Nenhuma manobra está indicada, pois ao mexer na criança, pode ocorrer uma piora da obstrução (grave). Na presença de uma obstrução grave (tosse inefetiva ou ausente, incapacidade de emitir sons), a manobra de desobstrução está indicada (5 “pancadas nas costas” e 5 compressões torácicas) até que o objeto seja expelido ou até que a criança perca a consciência.

 

b) Fase subaguda: pouco sintomática ou assintomática, quando o corpo estranho se movimentou e geralmente foi aspirado para vias aéreas inferiores.

 

Após esta primeira fase, a criança pode expelir o objeto, pode conseguir “movimentar” o corpo estranho, reduzindo ou cessando a sintomatologia ou pode vir a óbito pela obstrução.

 

c) Fase posterior: a criança volta a ter sintomas pelo processo inflamatório/infeccioso causado pelo corpo estranho na via aérea.

Na fase inicial, uma criança com uma obstrução que ainda consegue manter algum grau de ventilação deve ser incentivada a limpar as vias aéreas através da tosse. Se a criança menor de 1 ano apresentar sinais de aspiração grave (tosse não efetiva ou inexistente), a indicação da manobra através das “pancadas” no dorso e compressões torácicas visa deslocar o corpo estranho que esteja obstruindo a via aérea. A sequência deve ser realizada até que o objeto saia ou o bebê fique inconsciente.

Caso o bebê se torne inconsciente, chame por ajuda e inicie as manobras de ressuscitação cardiopulmonar (RCP).

 

No engasgo líquido:

Não há corpo estranho sólido. O líquido não faz obstrução completa de via aérea.

A deglutição

A deglutição é um processo neuromuscular que se verifica desde a vida fetal (por volta da 15ª semana), diferindo antes e após o aparecimento dos dentes. No RN, a deglutição é iniciada e controlada pelas sensações que partem de receptores labiais e linguais e se mantém nesse padrão infantil até 12 ou 15 meses de vida.

A divisão da deglutição é baseada nas características anatômicas e funcionais:

  1. Fase oral preparatória: ocorre a mastigação do alimento (incisão, trituração e pulverização do alimento) que, misturado à saliva, será deglutido. O alimento líquido permanece 2 a 3 segundos na cavidade oral. Há o fechamento dos lábios e o líquido é colocado entre a língua e o palato duro antes de iniciar a deglutição voluntária. Em bebês, a sucção e a deglutição de líquidos são feitas em tempo mínimo, na fase oral preparatória.
  2. Fase oral propriamente dita: começa com a propulsão posterior do bolo ou líquido pela língua e termina com a deglutição. A língua exerce várias funções nessa fase, como levar o alimento para ser mastigado, juntá-lo e conter o bolo formado, acomodando-o e impulsionando-o para trás. Quando o bolo ou líquido é levado para a faringe, ocorre o total selamento da cavidade oral (fechamento labial e sucção da língua contra o palato), para evitar que o alimento vá para a nasofaringe. Esse selamento ajuda a manter as forças de propulsão para o transporte do bolo através da hipofaringe, esfíncter esofágico superior e para dentro do esôfago. A fase oral dura menos de um segundo.
  3. Fase faríngea: consiste na contração peristáltica dos músculos constritores para propulsionar o bolo através da faringe. Simultaneamente, a laringe move-se anterior e superiormente e é fechada para proteger a via aérea. A epiglote é trazida para baixo sobre a glote durante a passagem do bolo, enquanto este passará lateral e posteriormente em direção ao esfíncter esofágico superior (o bolo líquido é desviado em duas correntes no momento em que flui ao redor da epiglote para dentro da fossa piriforme). Durante a fase faríngea, que dura aproximadamente um segundo, a deglutição é reflexa e envolve uma sequência complexa de movimentos coordenados.
  4. Fase esofágica: consiste em uma onda peristáltica automática, a qual leva o bolo para o estômago, consequentemente reduzindo o risco de refluxo gastroesofágico ou reentrada de material alimentar do esôfago para dentro da faringe

 

O líquido é designado por alguns autores como sendo a consistência que mais causa penetração laríngea e aspiração, mesmo quando comparado com a deglutição de líquidos espessados.

Gagging is not Choking.

Numa tradução mais livre, engasgo não é sufocação. O engasgo é um reflexo presente desde o nascimento, com o propósito de proteger as vias aéreas, impedindo que objetos estranhos e alimentos desçam pelo “caminho errado”. O reflexo é mais intenso até 4 a 6 meses.

 

No engasgo líquido:

Não há corpo estranho sólido. O líquido não faz obstrução completa de via aérea.

O bebê pode, por uma falha no mecanismo de proteção da via aérea durante a deglutição, aspirar o leite, que irá para os pulmões (qualquer líquido que entra nos pulmões não sairá com a manobra de desobstrução de corpo estranho sólido). Bebês pequenos apresentam o reflexo do engasgo (“gag reflex”) mais acentuado: tossem e vomitam. Podem apresentar uma “perda de fôlego” com o fechamento da via aérea pelo palato mole (apneia da deglutição), mecanismo que impediria o líquido de entrar na via aérea, situação na qual a manobra de desobstrução de corpo estranho também não estaria indicada.

 

O que fazer durante o engasgo líquido?

 

Se o bebê engasgar com o leite: retire o excesso visível da boca, posicione-o em pé e observe. Três situações podem ocorrer:

a) O bebê tosse e/ou vomita.

b) O bebê permanece sintomático após o engasgo, por provável aspiração líquida. Deve, portanto, ser levado a um Serviço de Emergências.

c) O bebê “perde o fôlego” – estimule delicadamente as costas do bebê, esfregando-a. Mais de 90% dos mesmos se recuperam, retornando a respiração.

 

Se o bebê não voltar a respirar e perder a consciência, chame por ajuda e inicie as manobras de parada cardiorrespiratória.

     

Fonte: Arquivo pessoal da autora

Compreendendo a fisiopatologia dos eventos, “Aspiração de corpo estranho sólido” e do “Engasgo líquido”, fica mais fácil entender o porquê da não adequação da manobra de desobstrução de corpo estranho nesse último caso. A manobra bem executada requer uma certa força infligida, tanto nas “pancadas” nas costas como na compressão torácica. Apesar de baixa incidência de lesões quando a manobra é bem executada, elas podem ocorrer, principalmente em recém-nascidos ou lactentes jovens. Mais um motivo para nos atermos às indicações formais.

 

Aspiração é recomendada para recém-nascidos, em vez dos golpes em dorso ou compressões abdominais, ambos potencialmente prejudiciais para esse grupo etário.”

 

Tania Zamataro
Presidente do Departamento Científico de Segurança da Criança e do Adolescente da SPSP.

 

 

Referências

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  3. Pires EC, Sassi FC, Mangilli LD, Limongi SCO, Andrade CRF. Food in liquid consistency and deglutition: a critical review of the literature. Rev Soc Bras Fonoaudiol. 2012;17(4):482-8.
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