O tubo digestivo tem diversas funções, como digerir e absorver os nutrientes – macronutrientes (carboidratos, proteínas, gorduras) e micronutrientes (vitaminas, minerais) –, excretar produtos da digestão, proteger o organismo dos agentes nocivos do meio ambiente, como produtos ingeridos, por meio da acidez do estômago, barreira do epitélio intestinal e do sistema imune do intestino. Também, o intestino interage com o cérebro, de modo que a comunidade microbiana presente no intestino, denominada microbiota intestinal, tem ação no cérebro, assim como o cérebro também age na microbiota intestinal.
O intestino, especialmente intestino grosso, abriga cerca de 100 trilhões de microrganismos, na maioria bactérias anaeróbias, que vivem em equilíbrio com o ser humano, cada qual presta auxílio mútuo: ser humano aos microrganismos, assim como microrganismos ao ser humano. Sim, a microbiota intestinal exerce muitas funções, como sintetizar ácidos orgânicos, butirato, vitaminas, aminoácidos; agir como barreira e inibir o crescimento de agentes danosos; estimular o sistema imunológico; e metabolizar substâncias não digeríveis.
É importante ter e manter a microbiota intestinal saudável desde o início da vida, como nascer de parto normal, receber leite materno exclusivo, não necessitar ser internado nem usar antibióticos, especialmente nos dois primeiros anos de vida. A partir dos 2-3 anos de vida a microbiota torna-se mais estável. Entretanto, ao longo da vida há situações que podem desequilibrar a microbiota intestinal, isto é, disbiose, onde ocorre diminuição da diversidade bacteriana e aumento do número das bactérias patogênicas em relação às bactérias benéficas. O uso de antibiótico pode levar à situação de disbiose da microbiota intestinal. Por esta razão, este medicamento deve ser utilizado quando realmente houver necessidade, sempre por indicação médica.
Para manter uma microbiota intestinal normal é importante seguir uma alimentação saudável, constituída pelos diversos grupos alimentares da pirâmide alimentar (https://www.sbp.com.br/fileadmin/user_upload/pdfs/14297e1-cartaz_Piramide.pdf), comer alimentos in natura ou minimamente processados, e evitar o consumo de alimentos ultraprocessados. Também o consumo de fibras pode estimular o crescimento de bactérias benéficas, como Lactobacilos e Bifidobactérias, que podem proteger e estimular o sistema imunológico e reduzir o risco de infecções.
Atualmente há uma avalanche de suplementos alimentares, como os probióticos. Deve-se mencionar que os probióticos podem ter utilidade em certas ocasiões, devendo-se atentar qual é o probiótico, sua dose e dias de uso. Infelizmente, na grande maioria das vezes está se utilizando probióticos que não têm evidência científica para muitas situações em que os probióticos não têm indicação.
Duas doenças que acometem o tudo digestivo têm chamado atenção e devem ser divulgadas e esclarecidas na população leiga e médica. Por isso, promove-se, internacionalmente, no mês de maio, campanha para conscientização da Doença Celíaca e da Doença Inflamatória Intestinal.
A doença celíaca é uma intolerância ao glúten, que é a principal proteína do trigo, centeio e cevada. Pode se manifestar em qualquer idade e há um amplo espectro de manifestações clínicas com sintomas gastrointestinais, extraintestinais como os descritos no quadro 1.
Também há grupos de risco que têm maior chance de desenvolver essa doença, como os parentes de primeiro grau de celíacos; aqueles que têm doenças autoimunes, como diabetes mellitus tipo 1, tireoidite de Hashimoto, déficit seletivo de imunoglobulina A, síndrome de Sjögren, alopecia areata, artrite reumatoide, hepatite autoimune; síndrome de Down; transtorno do espectro autista.
Quadro 1. Manifestações clínicas gastrointestinais, extraintestinais da doença celíaca
Sinais e sintomas gastrointestinais | Sinais e sintomas extraintestinais |
diarreia |
anemia ferropriva refratária à ferroterapia oral, anemia por deficiência de folato ou de vitamina B12, equimoses, petéquias baixa estatura, retardo do desenvolvimento puberal redução da densidade mineral óssea segundo a idade cronológica, hipoplasia do esmalte dentário, fratura óssea, artralgia, artrites, miopatia, tetania dermatite herpetiforme estomatite aftosa recorrente enxaqueca, epilepsia com calcificação cerebral parieto-occipital bilateral, ataxia relacionada ao glúten, neuropatia periférica, irregularidade menstrual, amenorreia, infertilidade, abortos de repetição depressão, autismo enzimas hepáticas elevadas, fraqueza, emagrecimento sem causa aparente, edema de aparição abrupta após estresse infeccioso ou cirúrgico |
Os indivíduos que apresentam os sintomas acima devem realizar os testes sorológicos específicos para doença celíaca e quando estes são positivos devem confirmar com o exame de biópsia de intestino delgado, feito pela pinça da endoscopia digestiva alta, que demonstrará atrofia da vilosidade intestinal.
Somente após a confirmação diagnóstica, firmada de preferência por gastroenterologista pediátrico ou de adulto, é que se deve proceder a retirada do glúten da dieta, que deve ser feita durante toda a vida. A dieta sem glúten promoverá desaparecimento de todos os sintomas, testes sorológicos se normalizarão, assim como a mucosa intestinal voltará a ser normal. Assim, o celíaco que faz a dieta totalmente sem glúten poderá ter qualidade de vida totalmente igual aos que não têm esta intolerância alimentar.
As doenças inflamatórias intestinais, que compreendem doença de Crohn e colite ulcerativa, têm se apresentado cada vez mais prevalentes na faixa etária pediátrica. Os sintomas mais comuns destas doenças são diarreia e dor abdominal, e apresentam frequentemente perda de peso e déficit de crescimento. Também podem apresentar dores articulares, artrite, lesões oculares e de pele.
O diagnóstico das doenças inflamatórias intestinais é confirmado pelos exames de colonoscopia, endoscopia digestiva alta e/ou exames de imagem, como enterotomografia ou enterorressonância magnética. O tratamento consiste em retirar o paciente da atividade da doença e depois mantê-lo em remissão da doença, utilizando-se um arsenal terapêutico de acordo com a gravidade e extensão da doença.
Em conclusão, a saúde digestiva está intimamente relacionada com a genética do indivíduo, os fatores ambientes, como saneamento básico e alimentação, assim como fatores emocionais, como o estresse, que podem afetar a microbiota intestinal.
Relatora:
Vera Lucia Sdepanian
Professora Adjunto, Doutora e Chefe da Disciplina de Gastroenterologia Pediátrica da Escola Paulista de Medicina – Universidade Federal de São Paulo (EPM-UNIFESP)
Presidente do Departamento Científico de Gastroenterologia da Sociedade de Pediatria de São Paulo