A vovó, com seu senso de observação natural e apurado, comenta com autoridade junto às suas “comadres”: “meu neto é um sabichão”, “minha neta é muito sabida”. Por quais critérios ela tem essas convicções? Pela observação empírica, que implica em comparar a performance das crianças que ela conheceu em idades semelhantes, fazendo as mesmas coisas que seu neto e sua neta estão fazendo. O leque de quesitos avaliados pode ser variado, tanto em quantidade, quanto em essência: seus netos são mais ágeis, falam mais palavras, expressam-se melhor, têm habilidades motoras finas especiais, “fazem contas de cabeça”, desenham como ninguém, etc, etc.
Um “instrumento de avaliação” é um instrumento de poder: tem o condão de separar os bons dos medianos e dos medíocres, podendo abrir portas ou fechá-las, estigmatizar, rotular. É, enfim, um instrumento passível de “manipulação”, para o bem ou para o mal.
Dentre os vários instrumentos com essa finalidade o que ainda exerce um certo fascínio é o Teste de QI. Surgiu no início do século passado por uma “encomenda” do exército americano à “Academia”, com a finalidade de escolher para a carreira militar os “melhores”, as “melhores cabeças”. O instrumento foi criado com várias seções em que habilidades motoras, verbais, linguísticas, de memória, de raciocínio lógico e matemático, de avaliação espacial, eram avaliadas e qualificadas. Entre 100 e 120 pontos estão os normais, acima dos 120 os superdotados, abaixo de 80 os “idiotas”.
Assim como a vovó, o teste de QI também compara pessoas e as qualifica.
Hoje, diz-se que videogames podem aumentar o resultado no teste de QI. Ouvimos também que a pandemia fez com que a geração atual tenha menor QI que as anteriores.
Há muito viés de análise nessas afirmações! Muito cuidado!
Para você pensar: quem é mais inteligente: Einstein ou Michelangelo? Lewis Hamilton ou Michael Jordan? Mozart ou Picasso? Kobra (o da arte em grafite) ou Madonna? Yuval Noah Harari ou Chico Anysio? Fernanda Montenegro ou Clarice Lispector? Steve Jobs ou Steven Spielberg? Nelson Mandela ou John Lennon? Papa Francisco ou Leonardo Messi?
Creio que a dificuldade que você está tendo para responder é absolutamente legítima e real, porque estamos tentando comparar desempenhos por um instrumento único – no caso o QI. As pessoas citadas, em seu nicho de atuação e expressão, são talentosíssimas, extraordinárias. Cada uma, a seu modo, domina o que faz e faz bem feito. Todas são inteligentes, excepcionais, mas talvez tenham uma performance diferente no teste de QI e, quem sabe, poucas se enquadrariam como superdotadas!
Não há um só tipo de inteligência, mas múltiplas inteligências. Um virtuose pode ser um “zero à esquerda” em matemática. Um pintor consagrado pode ser um desafinado. Um cantor extraordinário pode não ter habilidade para brincar de amarelinha. Um escritor premiado pode não conseguir desenhar uma simples bola de futebol. Um gênio (em alguma área) pode ter uma inteligência emocional decepcionante e não conseguir expressar a sua genialidade exatamente por causa disso.
Lições para aprendermos como pais, educadores e pediatras:
- Cada criança tem uma expressão própria de desenvolvimento
- É fundamental reconhecer e valorizar as habilidades que se destacam em uma criança – essas habilidades específicas podem ser a tradução de uma das várias inteligências que os humanos podem ter.
Relator: Fernando MF Oliveira
Coordenador do Blog Pediatra Orienta da Sociedade de Pediatria de São Paulo
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