Texto divulgado em 24/10/2022
A testosterona é o hormônio responsável pelo desenvolvimento de características sexuais masculinas. Os esteroides anabolizantes e similares (EAS) foram criados através da modificação da molécula de testosterona na tentativa de ampliar seus efeitos anabolizantes e reduzir seus efeitos virilizantes.
A reposição terapêutica de testosterona está indicada em situações de deficiência diagnosticada em homens, quadro clínico denominado hipogonadismo, cujos critérios diagnósticos são bem estabelecidos por diretrizes de várias sociedades médicas publicadas na literatura. O uso da testosterona também está indicado para terapia hormonal cruzada no cuidado à pessoa com incongruência de gênero ou transgênero. Tanto a testosterona quanto os EAS têm sido estudados com fins terapêuticos em outras condições clinicas específicas, mas ainda sem comprovação de eficácia e, especialmente, trazendo inúmeras preocupações dos especialistas com relação à segurança de seu uso no longo prazo. O uso dessas substâncias para fins de ganho de desempenho no esporte amador, para fins estéticos ou como agentes anti-envelhecimento é desprovido de qualquer base científica e é acompanhado de riscos bem descritos na literatura, justificando a proibição de seu uso nestes casos pelo Conselho Federal de Medicina através da Resolução no 1999/2012. O uso dos EAS por atletas de competição é proibido pelo Comitê Olímpico Internacional desde a década de 1970.
O uso disseminado de EAS dentro e fora do esporte de elite, especialmente em fitness, por aqueles que desejam melhorar a aparência e o condicionamento físico, tornou- se uma verdadeira epidemia mundial e deve ser considerado um grande problema social e de saúde pública também no nosso país.
O culto atual ao “corpo perfeito”, frequentemente estimulado pela mídia e por algumas celebridades, blogueiros, atletas e profissionais da saúde, estimula o uso de EAS, independente de sexo, idade e condição cultural e social. Os vários riscos resultantes da abusiva aplicação off label e anti-ética desses agentes são desconsiderados em prol de um mercado extremamente lucrativo, que guarda similaridades com o comércio e tráfico de drogas ilícitas e armas, envolvendo inclusive contrabando e manipulação em laboratórios clandestinos. Por essa razão, a prevalência de uso de EAS não é totalmente conhecida, mas estima-se que 3,3% da população (homens 6,4%, mulheres 1,6%) seja usuária ocasional ou frequente, sendo que esse percentual pode chegar a 18,4% entre esportistas recreacionais, 13,4% entre atletas, 12,4% entre prisioneiros, 8% entre tóxico-dependentes e 2,3% entre estudantes do ensino médio. A dependência de EAS pode atingir cifras de até 57,1% dos usuários, e é muito mais frequente neste grupo o abuso de outras substâncias como álcool, nicotina e cocaína, assim como a prevalência de hepatite B, hepatite C e infecções pelo HIV.
Os efeitos adversos da testosterona normalmente são leves e facilmente tratáveis nas doses terapêuticas utilizadas na reposição hormonal do hipogonadismo, mas, nos casos de abusos e utilização off label da testosterona e EAS, esses efeitos adversos podem ser severos, irreversíveis e potencialmente fatais, uma vez que são usadas doses 5-15 vezes maiores que as doses clinicas preconizadas, muitas vezes em preparações manipuladas sem qualquer controle sanitário e até mesmo indicadas para uso veterinário.
Os usuários de EAS acreditam que podem evitar tais efeitos colaterais indesejados ou maximizar os efeitos das drogas utilizando-as de maneiras que incluem: (a) ciclos: aplicações intercaladas com períodos variáveis de interrupção do uso; (b) associações: combinação de dois ou mais tipos diferentes de EAS; (c) pirâmides: aumento progressivo nas doses e/ou frequência de uso seguido de reduções graduais. Não há, obviamente, nenhuma evidência científica de que qualquer uma dessas práticas reduza as consequências nocivas do abuso dessas substâncias, sendo ainda mais preocupante a associação de EAS com outros agentes que elevam substancialmente o risco de efeitos adversos sérios para a saúde dos usuários. Neste sentido, é comum o uso combinado de EAS com o hormônio do crescimento para potencializar o efeito anabólico, hormônio tiroidiano para acelerar o metabolismo, gonadotrofina coriônica humana para impedir e neutralizar a redução no tamanho testicular, inibidores da aromatase para evitar ginecomastia, inibidores da 5 α redutase para prevenir a acne e a calvície e diuréticos para evitar retenção hídrica.
Os efeitos colaterais do abuso com EAS incluem a supressão gonadal, infertilidade, ginecomastia, acne, calvície, hepatotoxicidade, perturbações psiquiátricas (comportamento agressivo e suicida, depressão, risco de crimes aumentado), dependência, abscessos cutâneos e musculares e lesões ortopédicas. Nas mulheres, além de vários desses eventos adversos, são comuns as manifestações de hiperandrogenismo que incluem hirsutismo, engrossamento da voz, clitoromegalia e alopecia androgênica. O abuso prévio de EAS é a causa mais frequente de hipogonadismo entre homens jovens, sendo responsável por 43% dos casos. Com o uso prolongado de EAS, ocorre redução do volume e afilamento do córtex cerebral e aumento nas dimensões do núcleo accumbens, lesões essas implicadas como substrato anatômico para o desenvolvimento de comportamentos de dependência de drogas. No sistema cardiovascular, o abuso prolongado de doses suprafisiológicas de EAS exerce efeitos deletérios na fibra miocárdica provocando apoptose e/ou hipertrofia e consequentemente hipertensão, disfunção diastólica e sistólica, arritmias e morte súbita. Além disso, os EAS promovem efeitos deletérios sobre fatores de risco para doença cardiovascular aterosclerótica, como elevação de LDL, redução de HDL, aumento da eritropoiese e da agregação plaquetária, hipercoagulabilidade, que resultam numa taxa de mortalidade três vezes maior entre os usuários de EAS.
Endosso da Sociedade de Pediatria de São Paulo – SPSP:
Adolescentes estudantes do ensino médio representam um grupo de risco altamente vulnerável para uso de EAS e, portanto, devem ser o principal alvo de programas educativos e preventivos. Dados de um total de 6.000 meninos adolescentes dos EUA foram utilizados para um estudo que demonstrou a prevalência de uso de EAS de 12,6% entre os meninos que se consideravam muito abaixo do peso, 11,9% para os meninos que se consideravam muito acima do peso, contra 3,8% para os meninos que consideravam o peso certo. Em comparação com os meninos que se consideravam com o peso correto, os meninos que se percebiam como muito abaixo do peso foram significativamente associados com risco aumentado de uso de EA.
O médico pediatra deve estar atento para sinais de transtornos dismórficos corporais em adolescentes e para a intenção ou mesmo uso de EAS nessa população, trabalhando educação e acolhimento. Uma equipe interdisciplinar, envolvendo especialistas médicos, da nutrição, da educação física e da psicologia, pode melhor abordar esse perfil de pacientes.
Programas educacionais que abordam as influências sociais midiáticas e de seus pares que favorecem o uso de EAS por adolescentes, devem ser estimulados para diminuir a intenção de uso e a taxa de primeiro uso. Esses programas educacionais precisam ser direcionados às salas de aula do ensino médio e aos cenários de práticas esportivas individuais e coletivas, amadoras e de alto rendimento nessa faixa etária.
A disseminação médica de informações precisas para pais, treinadores e administradores escolares é vital essa abordagem. Ao demonstrar uma base de conhecimento que ganhe respeito dos adolescentes, o pediatra poderá efetivamente desencorajar o uso de EAS e convencer o paciente de que não há substituto para uma nutrição sadia e um programa de treinamento de força adequado. É importante enfatizar que os efeitos benéficos obtidos na imagem corporal, não compensam os efeitos deletérios a curto e longo prazo na saúde do adolescente.
Chamada para a Ação:
Diante de todas essas evidências científicas e do grave problema de saúde pública relacionado a este tema, a SBEM e a SPSP, vem através deste posicionamento cobrar atitudes urgentes das autoridades competentes, com a adoção de medidas mais efetivas para prevenir, coibir e vedar o uso anti-ético, off label e ilegal de EAS, através da educação preventiva, da regulamentação e controle da prescrição médica dessas substâncias, preservando os tratamentos previstos para as indicações que são amplamente estabelecidos na literatura médica.
Dr. César Luiz Boguszewski
Presidente SBEM Biênio 2021/2022
Dr. Paulo Augusto Carvalho de Miranda
Vice-Presidente SBEM Biênio 2021/2022
Dr. Alexandre Hohl
Presidente do Depto de End. Feminina, Andrologia e Transgeneridade da SBEM
Dr. Clayton Luiz Dornelles Macedo
Presidente da Comissão de Endocrinologia do Exercício e Esporte da SBEM
Dra Renata Dejtiar Waksman
Presidente da Sociedade de Pediatria de São Paulo
Dra. Jesselina Francisco dos Santos Haber
Membro do Departamento Cientifico de Endocrinologia Pediátrica da Sociedade de Pediatria de São Paulo
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