Pé torto congênito

Relatores:
Dr. Alexandre Francisco de Lourenço
Doutor da Disciplina de Ortopedia Pediátrica do Departamento de Ortopedia e Traumatologia da UNIFESP/EPM e membro do Departamento Científico de Ortopedia da SPSP.

Dr. José Antonio Pinto
Professor Adjunto – Chefe de Clínica da Disciplina de Ortopedia Pediátrica do Departamento de Ortopedia e Traumatologia da UNIFESP/EPM e Presidente do Departamento Científico de Ortopedia da SPSP.

O termo pé torto congênito (PTC) é usado para se referir ao pé equinocavovaro, que é uma das deformidades mais freqüentes ao nascimento. O PTC pode ser uma deformidade isolada (idiopática) ou associada com outras alterações. (FIGURA 1).

Fonte: Dr. José Antonio Pinto

FIGURA 1 – Aspecto clínico do pé torto congênito bilateral com a deformidade característica em equinocavovaro.

Incidência:
A etiologia do PTC é desconhecida e a sua incidência é muito variável. No Brasil, particularmente em São Paulo, foi observada uma incidência de 2,17/1.000 nascidos (Laredo, 1986).
Há acometimento bilateral em torno de 50% dos casos e, quando um lado apenas é acometido, o lado direito tem uma incidência um pouco maior que o lado esquerdo.  O sexo masculino é mais acometido que o sexo feminino numa proporção aproximada de 2:1.

Diagnóstico:
Atualmente podemos ter o diagnóstico pré-natal através do uso da ultra-sonografia (FIGURA 2)1. Contudo, apenas ao nascimento podemos fazer efetivamente o diagnóstico pelo exame físico.. Não há necessidade de radiografias ou qualquer outro exame complementar.

Fonte: Dr. José Antonio Pinto

FIGURA 2 – Exame de ultrassom mostrando diagnóstico pré-natal de pé torto congênito.

Patologia:
A deformidade é bastante característica e envolve a perna, que apresenta atrofia da panturrilha, e o pé, que está em eqüinocavovaro. Embora sejam importantes todas as alterações das partes moles envolvendo os tendões e ligamentos da porção posterior e medial do pé, o principal componente da deformidade no PTC é a luxação medial do complexo formado pelo navicular, calcâneo e cubóide em relação ao talo.

Tratamento:
Atualmente observamos uma mudança importante no modo de tratamento do PTC devido à imensa repercussão mundial obtida pelo método conservador de  Ponseti. Na verdade, a história por trás do tratamento do pé torto é uma das mais fascinantes da Medicina.
Há muitos anos atrás, quando não havia segurança para o tratamento cirúrgico, predominavam formas de tratamento não cirúrgicas que, entretanto, não podiam ser consideradas conservadoras porque eram agressivas como, por exemplo, o tratamento com o osteoclasto de Lorenz, uma ferramenta que mais lembrava uma máquina de tortura medieval que um apetrecho médico. Com o advento de novas técnicas cirúrgicas e, principalmente, com a maior segurança que os procedimentos anestésicos proporcionaram, houve um verdadeiro “boom” do tratamento cirúrgico do pé torto, que predominou até poucos anos atrás.

Nos últimos anos com a publicação de resultados de longo prazo de muitas crianças tratadas com as liberações cirúrgicas extensas, que  revelaram altas taxas de recidiva, complicações, rigidez e dor,  aliado ao fato de se procurar meios menos invasivos em Medicina, resultou no reaparecimento do interesse pelos métodos conservadores2.

Infelizmente a técnica de tratamento conservador mais usada até poucos anos atrás, o método de Kite, trazia poucos resultados e a maioria das crianças acabavam tendo indicação de tratamento cirúrgico. Este cenário mudou graças à divulgação do método de Ponseti, que tem representado uma revolução mundial no manejo do PTC3,4.

Técnica de Ponseti:
Essa técnica, embora tenha sido descrita há muitos anos, representa uma das contribuições mais modernas para o tratamento do PTC. O método Ponseti é extremamente simples, indolor e, quando aplicado corretamente, com o auxílio da amamentação materna, muitas vezes a criança até dorme durante a confecção do gesso corretivo. (FIGURA 3). Este tratamento permite uma correção em cerca de 90% dos casos de pé torto idiopático, independente de sua gravidade.

Fonte: Dr. José Antonio Pinto

FIGURA 3 – A confecção do gesso deve ser feita em ambiente tranquilo e, se a criança está sendo amamentada ela fica bem calma.

Obviamente os detalhes mais técnicos do método Ponseti não são do interesse do Pediatra, contudo, é importante saber alguns passos deste tratamento para poder lidar com as dúvidas dos pais, reforçar as recomendações dadas pelo Ortopedista Pediátrico e colaborar com o sucesso dos resultados.

O método Ponseti envolve manipulações suaves e trocas gessadas realizadas semanalmente, sendo geralmente necessárias cinco semanas em média para obter a correção de todos os componentes da deformidade, exceto pelo equinismo, que exige um pequeno procedimento cirúrgico, a tenotomia do tendão calcâneo. (FIGURA 4).

Fonte: Dr. José Antonio Pinto

FIGURA 4 – A tenotonia do tendão calcâneo é a última etapa antes do gesso final. Apenas um ponto é necessário e não fica cicatriz.

Na técnica original a tenotomia é realizada com anestesia local no consultório, porém, temos dado preferência para a realização desse procedimento sob anestesia geral no hospital por ser muito mais seguro. A vantagem de se seguir a técnica original é a possibilidade de se usar essa técnica em crianças que não têm acesso a hospitais, porém, muitas vezes a criança fica muito agitada após a injeção do anestésico e isso prejudica o procedimento. A vantagem de se fazer sob anestesia geral é a palpação do tendão que é bem mais fácil, assim como a confecção do gesso.  Após a tenotomia, o pé é imobilizado com gesso inguino-podálico com o tornozelo a 20º de flexão dorsal e abdução acentuada (70º) por três semanas. São pontos fundamentais para o sucesso do tratamento:

 Criança deve estar calma: amamentação deve ser estimulada durante a confecção do gesso num ambiente adequado
 Duas pessoas devem fazer o gesso inguino-podálico (não pode ser feito gesso curto tipo “botinha”)
 Mínimo tempo entre a retirada e a confecção de novo gesso (preferência retirar gesso na clínica ou poucas horas antes)
 Nunca se deve forçar o pé (apenas moldá-lo bem)
 Tenotomia do tendão calcâneo deve ser realizada apenas quando resta apenas o eqüino como deformidade

Após a retirada do último gesso, a manutenção da correção é realizada por uma barra de abdução (também chamada de aparelho de Denis-Browne) em rotação externa de cerca de 70º e 10º de dorsiflexão, em uso contínuo por três meses, seguido por uso noturno num período de três a quatro anos (FIGURA 5). Quando a deformidade é unilateral o membro normal deve ficar em rotação externa de 40º.

Fonte: Dr. José Antonio Pinto

FIGURA 5 – A órtese de abdução deve ser usada por 3 meses após o final da fase de gessos por tempo integral, ou seja, pode ser retirada apenas para banho. Após este período deve ser mantida por mais 3 anos para uso durante o sono (12h/dia)

Há algumas dificuldades com o método, sendo a principal a adesão ao uso da órtese. A falha de se usar a órtese é a maior causa de recidiva da deformidade. A importância do uso adequado para manter a correção deve ser bem enfatizada para os pais. Aqueles que seguem corretamente o uso da órtese são os que têm o melhor resultado (FIGURA 6).

Fonte: Dr. José Antonio Pinto

FIGURA 6 – Aspecto clínico antes e depois do tratamento pelo Método Ponseti.

Hoje o método Ponseti é considerado o tratamento padrão para a maior parte da comunidade médica mundial e seu idealizador teve a oportunidade de ver sua técnica reconhecida como uma das maiores contribuições na Ortopedia. Isso se deve ao fato que os resultados com essa técnica têm sido reproduzidos por vários colegas no mundo inteiro5.

Tratamento cirúrgico:
Com o emprego da técnica de Ponseti adequada, as indicações de cirurgias extensas devem diminuir. Mesmo pacientes com pés inveterados têm benefício de manipulação gessada antes de se fazer qualquer procedimento cirúrgico e, algumas vezes, podem ser totalmente corrigidos. 6 Assim, provavelmente no futuro serão cada vez mais raras as indicações de liberações cirúrgicas mais amplas.

REFERÊNCIAS:

1.FOSTER BK, FURNESS ME, MULPURI K. Prenatal ultrasonography in antenatal orthopaedics: a new subspecialty. J Peditar Orthop 22(3) :404-409, 2002.

2.LOURENÇO AF, DIAS LS, ZOELLICK DM, SODRE H. Treatment of residual adduction deformity in clubfoot: the double osteotomy. J Pediatr Orthop 21: 713-718, 2001.

3.PONSETI IV – Congenital clubfoot. Fundamentals of treatment. Oxford/New York. Oxford Press, 1996.

4.PONSETI IV – Clubfoot management. J Pediatr Orthop 20 (6): 699-700, 2000.

5.HERZENBERG JE, RADLER C, BOR N. Ponseti versus traditional methods of casting for idiopathic clubfoot. J Pediatr Orthop 22: 517-522, 2002.

6.LOURENÇO AF, MORCUENDE JA. Correction of neglected idiopathic club foot by the Ponseti method. J Bone Joint Surg Br. 2007;89(3):378-81.