O objetivo dos meios de comunicação social (ou mídia) que, em grande parte, é patrocinada pela publicidade, alterou-se com o tempo. Hoje, além da venda de produtos, serviços e bens simbólicos, ela demonstra modelos a serem seguidos, apresentando, desta forma, um objetivo explícito, que consiste em oferecer as vantagens de determinados produtos, e um objetivo implícito, por intermédio do qual flui sua ação pedagógica. Por meio desta ação, a mídia propõe transmitir valores sociais e pessoais, tornando-se um modelo de referência ao veicular um padrão sinalizador de um status social, bem como um modelo de cidadania (1).
Se a mídia, além de transmitir valores sociais e pessoais e de se constituir em modelo de referência, tem ainda a função de demonstração de modelos a serem seguidos, isto é, a apresentação de padrões físicos, estéticos, sensuais, comportamentais, aos quais as pessoas devem se amoldar, ela efetivamente desenvolve uma ação pedagógica (2).
Sabe-se que uma novela é um instrumento muito mais poderoso para moldar comportamentos que a propaganda. O processo é o mesmo, porém o espectador tem menos defesa ou crítica em relação ao entretenimento que em relação à propaganda. Na mesma linha, programas chamados “de auditório” são grandes criadores de tendências e comportamentos.
As transformações tecnológicas e de valores da nossa sociedade para a subjetividade e o imaginário infantil e juvenil têm trazido determinadas ruptura e desafios, já que as noções sobre o que significa ser criança e jovem são criadas pelo adulto e, na maioria das vezes, não acompanham o ritmo das mudanças em curso. “Os personagens da mídia são invenções dos adultos, que querem capturar a diferença entre as crianças e eles mesmos”. Por isso, haveria uma cristalização da maneira como as crianças são representadas na maioria dos programas de televisão, no cinema e na publicidade. Essas leituras correspondem a visões hegemônicas dos adultos, que acabam oferecendo imagens saturadas do universo infantil (3).
Vivemos em uma sociedade midiática e esse fato precisa ser analisado partindo do poder que a mídia tem para definir padrões de comportamento e valores. “Muitos vão à televisão e banalizam a miséria humana, abusam do grotesco, revelam as suas próprias intimidades e as dos demais. Isto é o oposto do que temos que fazer para ter uma mídia de qualidade, que promova a paz, alerta Hiran Castello Branco (4).
Segundo Bill Bernbach, fundador da agência de propaganda americana Doyle, Dane, Bernbach. “Todos nós, que usamos a mídia de massa profissionalmente, somos formadores da sociedade. Nós podemos vulgarizar a sociedade. Podemos brutalizar a sociedade. Ou podemos ajudar a elevá-la a um patamar melhor” (6).
Há mais desinformação que má intenção ao se produzir mídia com e para crianças. Poucos profissionais levam em consideração que esse público requer tratamento especial, justamente por estar em fase de formação. Os debates que têm se aberto recentemente mostram que a mídia pode avançar muito como veículo de propagação de valores mais humanos. Hiran Castello Branco pondera que “A mídia, apesar de todos os seus deslizes, presta um grande serviço para a unidade social. Isso pode ser constatado se olharmos tanto para as produções de entretenimento, quanto para as jornalísticas.” (4).
De acordo com Cininha de Paula, que coordena workshops para atores mirins, atualmente há um aumento do número de crianças que buscam estes workshops e, muitas vezes, a visão que elas têm da realidade do ator brasileiro é moldada pela mídia. A idéia de que a vida de ator se resume à fama e ao dinheiro é a mais comum na imaginação dessas crianças, que se espantam quando descobrem as inúmeras dificuldades inerentes à profissão de ator no Brasil. “Quando relato a realidade da maioria dos atores brasileiros percebo que as crianças não entendem direito o que estou dizendo, pois já trazem uma visão idealizada da profissão. Muitos nem sabem por que estão ali. Vão forçados pelos pais que, na realidade, é quem quer vê-los transformados em atores e atrizes. Todos os que trabalham com as crianças devem ter o cuidado de estabelecer o equilíbrio entre a cobrança e o respeito pela infância.” (6).
O adulto raramente capta com propriedade o universo infantil, com suas sutilezas e necessidades. A representação da criança na mídia é muitas vezes distorcida pelo despreparo profissional que gera abordagens equivocadas, pela ilusão de fama que impulsiona pais de atores mirins e pela falta da seriedade necessária para se respeitar e entender o mundo de crianças e jovens e, portanto, produzir mídia de qualidade com e para este público (7).
Para conseguir criar bons programas é necessário que roteiristas, diretores e produtores se envolvam com os símbolos pelos quais crianças vêem o mundo e, acima de tudo, que criem, dirijam e produzam bons programas considerando não só o público-alvo, como seus atores. A maioria das produções infantis não tem nada do mundo das crianças – “Elas só se preocupavam em como transformar a criança em um adulto o mais rápido possível”, como foi relatado por Rosemberg e Nascimento, no Seminário TVQ – Criança, adolescente e mídia (8).
A mídia não pode, entretanto, ser responsabilizada sozinha por uma possível inversão de valores e pelo consumo desenfreado. A criança participa de outras esferas de convivência, como família e escola, que devem estar atentas a essas questões (9).
A participação de crianças e adolescentes em produções artística
Em nosso meio é grande a demanda de crianças e adolescentes para figurar em produções artísticas e publicitárias, além do mundo esportivo, principalmente o futebolístico. Na maioria das vezes, entretanto, diretores, produtores e técnicos esperam que eles atuem como se fossem adultos. Para muitas crianças isso constitui uma atividade atraente e economicamente compensatória para suas famílias. Assim, muitas, por insistência de seus pais, podem ser submetidas a:
- testes e provas de seleção (a maioria será frustrada pela desqualificação ou desclassificação);
- jornada de trabalho excessiva em gravações, muitas vezes em condições ambientais desfavoráveis;
- privação de freqüentar a escola em horários adequados e de brincar com seus colegas;
- afastamento de seu ambiente familiar, quando são obrigados a se mudarem para onde ocorre a produção artística;
- sexualização e sensualização inadequada e inoportunamente precoces.
Embora se tornar uma celebridade possa ser uma experiência muito gratificante num primeiro momento, a maioria destes atletas e artistas-mirins tem uma existência profissional efêmera (como também ocorre com vários adultos). São pessoas descartáveis para o mundo esportivo, do entretenimento e publicitário. Mesmo as celebridades mirins não descartadas e, à medida que evoluem nos meios esportivos ou artísticos, enfrentam desafios para se ajustar à sociedade.
Esses desafios, se não bem conduzidos e administrados, podem deixar seqüelas psíquicas devastadoras e irreversíveis. Não citaremos exemplos, mas o leitor seguramente deve lembrar de celebridades mirins e ex-celebridades mirins que se tornaram adultos com comportamentos um tanto quanto bizarros, quando não de risco, marginais ou criminosos.
Em grande número de vezes a condução inadequada desses desafios resulta em violência psicológica, que pode ser praticada de diversas formas, como rejeição, depreciação, responsabilização excessiva, cobranças exageradas, discriminação, desrespeito e até punições humilhantes, uma vez que, em grande número de vezes, a criança ou o adolescente ali comparece e permanece para atender às expectativas dos adultos.
Vale ressaltar que crianças e adolescentes que estão em situação de risco para esta forma de violência apresentam também problemas na escola e no grupo social ao qual pertencem. Alguns indícios de distúrbio do desenvolvimento da personalidade podem ser observados em idade precoce, como (14):
- dificuldades para se alimentar, dormir ou concentrar-se;
- introspecção, timidez e passividade exagerada;
- depressão e idealização suicida;
- dificuldades de relacionamento com os outros;
- identidade prejudicada;
- distúrbios da sexualidade;
- promiscuidade / prostituição;
- agressividade / rebeldia;
- abuso de crianças menores.
Sendo dever da família, da sociedade e do Estado colocar crianças e adolescentes a salvo de toda forma de exploração (Arts. 60 a 69, Art. 149, Arts. 240 e 241 do ECA (10) e Arts. 402 a 438 da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT (11)) e “assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão” (Art. 227 da Constituição da República Federativa do Brasil (12)), compete aos profissionais da saúde, particularmente os pediatras, e da educação representar a sociedade nesta relação.
Cabe às famílias, que muitas vezes solicitam a orientação de um pediatra ou pedagogo, exigir que as agremiações esportivas, as emissoras de televisão e as produtoras de cinema ou de filmes publicitários comerciais adaptem seu processo de trabalho às necessidades das crianças e dos adolescentes, respeitando suas faixas etárias, além dos ditames constitucionais e os do ECA. Na omissão da família tal exigência cabe aos Conselhos Tutelares e à Justiça da Infância e da Juventude.
É oportuno regulamentar o Art. 149 do ECA (10), que determina que cabe à autoridade judiciária disciplinar a participação de crianças e de adolescentes em eventos artísticos e na participação de crianças e de adolescentes em produções cinematográficas, teatrais, televisivas, radiofônicas, fonográficas e de propaganda e publicidade, considerando determinadas condições, além de outras já estabelecidas em lei.
Ao regulamentar esse artigo, dever-se-ia exigir da autoridade judiciária, além das já estabelecidas no ECA (10) e na CLT (11), condições para se autorizar a participação dos infantes e jovens nos eventos artísticos como: jornada de trabalho com duração e periodicidade adequada para cada faixa etária, nunca superior a 4 horas diárias diurnas, em horário adverso ao do período de frequência à escola; proibição ou pelo menos limitação do exercício das atividades aos sábados, domingos e feriados e proibição da exposição das crianças e adolescentes a situações de constrangimento físico ou psicológico, de humilhação, de lascívia, de depreciação de sua auto-imagem e de submissão à situação vexatória.
Leis, entretanto, tratam principalmente da proteção contra abusos em questões trabalhistas e de saúde física, com salvaguardas morais, mas como proteger as crianças e adolescentes dos abusos psicológicos, muitas vezes praticados por seus próprios pais que são quem deveria protegê-los?
Não se trata aqui de querer inviabilizar a participação de crianças e de adolescentes em atividades artísticas, pois o desenvolvimento das potencialidades criativas dos jovens tem importância relevante para sua vida adulta. Há, entretanto, a necessidade de discipliná-la, tentando, assim garantir crescimento e desenvolvimento adequados, com direito à convivência familiar e comunitária, à dignidade e à inviolabilidade da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores morais, das idéias, dos espaços e objetivos pessoais da criança e do adolescente.
Prevenção e proteção do abuso psicológico
De acordo com Walcyr Carrasco (13), na crônica “Fama fácil”, publicada na revista Veja São Paulo, em 19 de abril de 2006, na página130: “Boa parte da culpa é dos pais. Há anos, estive, para meu susto, na seleção da novela ´Chiquititas´, do SBT. A fila dobrava o quarteirão. A maioria absoluta das meninas de 6, 9 anos estava de bustiê, umbigo de fora. Eu pensava ´No que pensam mães que vestem uma menina assim?´ O teste era honestíssimo. Havia que cantar e dançar. Quase todas as garotinhas interpretavam ´Na Boquinha da Garrafa`, hit da época. Era a senha para a candidata ser reprovada.
– Vira só imitação, sem criatividade – explicou a responsável pelos testes.
Saí chocado. Foi terrível ver garotinhas rebolando como starlets!
A glória implica um padrão de vida mais elevado. Não nego. Pouca gente compreende que a fama deve resultar de um trabalho sério. Buscar o sucesso resulta em amargura. O sonho transforma-se em pesadelo. E impede a pessoa de descobrir sua verdadeira vocação.”
Um problema é como defender crianças e adolescentes às vezes até de sua própria família. Um ponto de partida poderia ser a aplicação do conceito do consentimento livre e esclarecido para a participação na atividade a ser veiculada pela mídia como um instrumento básico de proteção, partindo do princípio de que, no caso de menores de idade (como definidos nos Arts. 3º, 4º e 5º do Código Civil) (14), ambos os pais são considerados defensores dos interesses de seus filhos (Art. 21 do ECA).
A participação da criança ou adolescente nas decisões deve ser considerada, pois seu direito à autonomia deve ser preservado, desde que observado que idade, capacidade intelectual, cognitiva e emocional estão envolvidas na sua habilidade em contribuir para as decisões (Arts. 15 e 16 do ECA).
A capacidade de compreender a conseqüência de seus atos é um processo que normalmente se inicia a partir dos seis anos de idade e que vai amadurecendo até o final da adolescência. Dessa forma o jovem tem o direito de fazer opções, embora, em situações que envolvam riscos físicos, sociais ou psicológicos torna-se sempre necessária a participação e o consentimento dos pais ou responsáveis. A priori são os pais que decidem, mas este princípio não se aplica quando, a juízo de profissionais que interagem na atividade, a decisão dos pais conflita com o melhor interesse da criança ou do adolescente (Art. 21 do ECA).
Para a aplicação do consentimento esclarecido é essencial haver boa comunicação e uma relação de respeito mútuo entre os profissionais envolvidos, a criança ou o adolescente e seus pais ou responsáveis. Detalhes sobre todos os processos que envolvem a atividade e seus riscos potenciais devem ser explicados claramente, considerando os aspectos culturais, legais, morais e religiosos do menor de idade e sua família.
Seria oportuna a criação de órgãos de auto-regulamentação, formado por representantes dos meios de comunicação, das produtoras, dos anunciantes, das associações de médicos, de psicólogos, de artistas, de juristas etc. Inicialmente este órgão elaboraria diretrizes e recomendações a serem aplicadas para cada tipo de participação de crianças e adolescentes na mídia, esclarecendo quais as responsabilidades dos pais, dos anunciantes, das agências de publicidade e dos veículos de comunicação. Este órgão daria também a oportunidade para qualquer cidadão representar contra um veículo de mídia que transmitisse conteúdo inadequado interpretado por crianças.
Considerações finais
Lembrando o que diz a Constituição da República Federativa do Brasil (12), em seu Art. 227: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão” é essencial que a mídia assuma um papel mais ativo, cumprindo seu papel de informar e educar. Desta forma torna-se imperioso que a formação dos profissionais dos meios de comunicação capacite-os a exercer sua atividade de modo a respeitar e valorizar os direitos da criança e do adolescente, garantindo-lhes crescimento e desenvolvimento adequados, direito à convivência familiar e comunitária, dignidade e inviolabilidade física, da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores morais, das idéias, dos espaços e dos objetivos pessoais.
Referências bibliográficas
- Abramo HW: Cenas juvenis – punks e darks no espetáculo urbano. 1ª ed. São Paulo, Ed. Página Aberta Ltda., 1994, p 73.
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- Castro LR: A Criança e o adolescente como personagens da mídia. In: Rosemberg B, Nascimento G (Rels): Seminário TVQ – Criança, adolescente e mídia. Acesso através de: www.midiativa.tv/index.php/midiativa/content/view/full/532, acesso em julho de 2008.
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- Bos B: Quero despertar o interesse das crianças pelas coisas importantes. In: Rosemberg B, Nascimento G (Rels): Seminário TVQ – Criança, adolescente e mídia. Acesso através de: www.midiativa.tv/index.php/midiativa/content/view/full/532, acesso em 01 de julho de 2008.
- Miranda L: Publicidade, consumo e infância – e suas relações. Acesso através de: www.cedecaceara.org.br/seminario%20publicidade%20consumio%20e%20infancia.
pdf, acesso em julho de 2008. - Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei n° 8.069, de 13 de julho de 1990.
- Consolidação das Leis do Trabalho – Decreto-lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943.
- Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 5 de outubro de 1988.
- Carrasco W. Fama fácil. Veja São Paulo. 19 de abril de 2006, p.130.
- Código Civil – lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002.
Texto extraído, resumido e adaptado por Dr. Mário Roberto Hirschheimer a partir do capítulo: Oliveira CA, Hirschheimer MR, Ghirotti PR, Barros VFR, Alves I. Exposição de Crianças e Adolescentes na Mídia. In: Constantino CF, Barros JCR, Hirschheimer MR (eds). Cuidando de Crianças e Adolescentes sob o Olhar da Ética e da Bioética. São Paulo, Atheneu, 2009, p 355-397.
Dr. Mário Roberto Hirschheimer: Vice-presidente da Sociedade de Pediatria de São Paulo; Presidente do Departamento de Bioética da Sociedade de Pediatria de São Paulo – gestão 2007-2009; Médico Pediatra do Hospital Municipal Infantil Menino Jesus, São Paulo, SP.
Texto divulgado em 1º/07/2009.