No Dia Internacional da Síndrome de Down: Uma História e um Apelo

No Dia Internacional da Síndrome de Down: Uma História e um Apelo

Preciso contar uma história para vocês no dia de hoje. Sim, especificamente neste dia!

Vamos lá, vocês irão entender.

Há 12 anos comecei a trabalhar em uma UBS (Unidade Básica de Saúde) no bairro de Paraisópolis. Essa UBS, que é um instrumento de saúde pública, era mantida pelo Hospital Albert Einstein. Era um projeto maravilhoso, uma UBS dentro da comunidade, voltada ao atendimento das crianças, mantida por um hospital de primeira linha e com todos os recursos que o hospital tinha, inclusive a equipe médica. Realmente um privilégio. Minha tarefa era montar um ambulatório para atendimento das questões do desenvolvimento das crianças, uma área nobre da pediatria. O pediatra tem como uma de suas funções primordiais o acompanhamento do desenvolvimento de seus pacientes.

Eu alternava minha carga horária da semana entre meu consultório particular de pediatria e este nobre projeto, intercalando entre manhãs e tardes as minhas idas a Paraisópolis, atendendo os pacientes, conversando com os residentes e com a equipe multiprofissional que acompanhava as crianças que precisavam de terapias. A equipe era composta de psicólogos, fonoaudiólogos, fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais. Quando sobrava um tempo eu conversava e trocava ideias com meus colegas de outras especialidades: alergistas e imunologistas, infectologistas, neurologistas, etc. A equipe era muito completa.

Em uma dessas conversas entre colegas, conheci uma profissional que me ensinou muito. Ela, uma excelente alergista e imunologista, havia estudado em uma Faculdade de Medicina bem tradicional do nosso Estado, e era uma das profissionais mais conhecidas desse meio. Logo percebi que havia uma inquietação constante em seus pensamentos. As conversas sempre iam por caminhos desafiantes e de muita reflexão. Com o passar do tempo ganhamos mais intimidade e começamos a falar de nossas famílias e vida pessoal. Eu falava de minha esposa e filho (na época eu ainda tinha somente um filho), e ela sobre seu marido e seus três filhos. Seus discursos sobre seus filhos eram cheios de energia, amor, afeto, carinho e de uma inquietação constante. Ela me contava sobre eles com toda essa energia, mas quando falávamos sobre o Pedro, seu filho que tem síndrome de Down, essa inquietação crescia. Era uma inquietação e uma indignação com algumas de suas experiências vividas. Para ela, o Pedro não tinha limites, ele podia voar! Mas como assim?

Eu me colocava a pensar sobre esses superpoderes que ela atribuía a ele e não entendia. Todos nós temos limites, não temos? Tinha vontade de dizer para ela que nem sempre a gente consegue tudo o que quer, mas não fiz isso. Continuei intrigado com seu modo de pensar durante um bom tempo. Onde será que ela queria chegar?

Hoje em dia, depois de muitos anos e de atender tantas crianças com deficiência, eu consegui entender o que ela fazia e ainda faz. O mundo coloca tantas barreiras e enxerga tantos limites para as crianças com síndrome de Down ou que tenham alguma deficiência, que nós, que sabemos que isso não está certo e que é um hábito cultural, damos a eles superpoderes para poderem enfrentar as injustiças desse mundo.

Nós enxergamos além do horizonte que nos é imposto porque é necessário; fazemos disso nosso jeito de advogar por essas crianças. Elas merecem essa mudança de visão, isso é fundamental em nossa sociedade.

Obrigado por este aprendizado, minha querida colega.  Agora sei onde você quer chegar!

Termino aqui essa história com um pedido: que tal se todos (e aqui, um apelo especial aos colegas pediatras) que cruzam suas vidas com pessoas com síndrome de Down ou alguma deficiência ajudassem também a construir esta visão de possibilidades e oportunidades para estas pessoas?

Parabéns a todas as pessoas com síndrome de Down, parabéns pelo dia de vocês! Que todos possam ultrapassar a barreira deste horizonte!

 

Relator:

Luiz Guilherme Araujo Florence
Membro do Núcleo de Estudos sobre a Criança e o Adolescente com Deficiência da Sociedade de Pediatria de São Paulo