Não precisamos voltar ao tempo das cavernas!

Não precisamos voltar ao tempo das cavernas!

Este texto me inspirou pela leitura de um livro, cujo título é provocador: A Fábrica de Cretinos Digitais: os perigos das telas para nossas crianças.*

Desenvolvido por Michel Desmurget, neurocientista francês, suas opiniões estão embasadas em centenas de publicações científicas, repletas de dados estatísticos e meta-análises. Trabalho de fôlego. Suas teses contrariam muitos interesses e despertam um coro inflamado das vozes dos que discordam.

Sublinho dois pontos importantes nesse livro:

  1. Quanto mais aumenta o tempo de uso das telas (isso inclui tipicamente a televisão, os videogames, os telefones celulares, o tablet e o computador), mais as notas escolares caem!

Escreve o autor: “em seu conjunto, a literatura científica demonstra de forma límpida e convergente que o tempo passado diante de telas domésticas afeta negativamente o bom desempenho escolar. Independentemente de gênero, idade, classe de origem e/ou protocolos de análises, a duração do consumo é associada de forma desfavorável à performance estudantil. Dito de outro modo, quanto mais tempo as crianças, adolescentes e estudantes passam com seus brinquedos digitais, mais as notas despencam. (…) De fato, os resultados mostram com extrema clareza que o enquadramento estrito de utilizações digitais recreativas, em prol de práticas extraescolares consideradas positivas (deveres de casa, leitura, música, atividades físicas, etc.,) é uma característica distintiva quase unânime das famílias cujos filhos apresentam um elevado grau de performance escolar”.

Você pode aquilatar a importância do tempo gasto diante das telas visualizando a tabela abaixo, que analisa o tempo médio de exposição às telas por dia:

 

Idade Tempo médio por dia Total em
1 ano
Equivalência
< 2
anos
50 minutos, ou 8% do tempo de vigília; ou 15% do tempo livre da criança > 600
horas
Tempo aproximado de 1 ano letivo em escola infantil na Califórnia
2-8
anos
2h45 >>1.000
horas
Aproximadamente equivalente ao tempo de 6-7 anos letivos completos; ou, 460 dias de vida desperta (1 ano e 3 meses); Ou, tempo de estudo necessário para se tornar um hábil violinista
9-12
anos
4h45 >1.700
horas
Tempo aproximado de 2 anos letivos, ou 1 ano de trabalho de um assalariado em tempo integral
13-18 anos 7h22
45% do tempo normal de vigília, ou 30% do dia
2.680 horas
(112 dias)
3 anos letivos

 

  1. Esse mesmo “ladrão de tempo” – as telas, além de afetar o rendimento escolar, pode provocar: transtornos no sono, aumentar o sedentarismo, expor a criança e o adolescente a conteúdos “perigosos” (sexo, violência, tabagismo, álcool, etc.), afetar a memória, a cognição e o controle emocional.

Aldous Huxley previra, há mais de 80 anos: “a ditadura perfeita,(…) uma prisão sem muros da qual os prisioneiros não sonhariam escapar; um sistema de escravidão em que, graças ao consumo e ao entretenimento, os escravos amariam a própria servidão”.

 

O smartphone, dentre as telas, é uma daquelas prisões sem muros, talvez a mais “eficiente”.

O autor Michel Desmurget, fazendo um comentário ácido sobre o tema, diz: “Essa plataforma de distração em massa concentra a integralidade (ou quase) das funções digitais recreativas. Ela permite acessar todos os tipos de conteúdos audiovisuais, jogar videogames, surfar na Internet, trocar fotos, imagens e mensagens, conectar-se às redes sociais, etc.; e permite tudo isso sem a menor restrição de tempo ou lugar. O smartphone nos segue o tempo todo, sem fraquejar nem nos dar trégua. Quanto mais os aplicativos se tornam “inteligentes”, mais eles substituem nossa reflexão e mais nos ajudam a nos tornar idiotas. Eles já escolhem nossos restaurantes, selecionam as informações que nos são acessíveis, separam as publicidades que nos são enviadas, determinam os trajetos que devemos seguir, propõem respostas automáticas a algumas de nossas interrogações verbais às mensagens que nos são enviadas, “domesticam” nossos filhos desde o maternal, etc. Com um pouco mais de empenho, eles acabarão pensando no nosso lugar.”

As estatísticas servem para perceber tendências, avaliar riscos. Ajudam a fazer escolhas, a traçar caminhos. Elas não determinam, em nível do indivíduo, absolutamente nada. Por isso, para cada afirmação feita, você pode encontrar exemplos que são contrários; isso não invalida a preocupação com os dados obtidos, nem afirma que os resultados apontados não sejam significantes. Toda regra tem exceção. A exceção confirma a regra. Devemos interpretar as afirmações do livro citado, seguindo esse caminho.

Em resumo, o livro recomenda, para as famílias, regras básicas e desafiadoras que vão na “contramão do sistema”. Orientações referendadas, também, pela Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), com discretas variações quanto ao tempo restritivo de exposição às telas por faixas etárias.

A SBP publicou em 2016 e atualizou em 2020 o Manual de Orientação “Saúde de Crianças e Adolescentes na Era Digital”, organizado pelo Departamento Científico de Adolescência. O mesmo recomenda que se deve:

  • Evitar a exposição de crianças menores de dois anos às telas, mesmo que passivamente;
  • Limitar o tempo de telas ao máximo de uma hora por dia, sempre com supervisão para crianças com idades entre dois e cinco anos;
  • Limitar o tempo de telas ao máximo de uma ou duas horas por dia, sempre com supervisão para crianças com idades entre seis e 10 anos;
  • Limitar o tempo de telas e jogos de videogames a duas ou três horas por dia, sempre com supervisão; nunca “virar a noite” jogando, para adolescentes com idades entre 11 e 18 anos;
  • Para todas as idades: nada de telas durante as refeições e desconectar uma a duas horas antes de dormir;
  • Oferecer como alternativas: atividades esportivas, exercícios ao ar livre ou em contato direto com a natureza, sempre com supervisão responsável;
  • Criar regras saudáveis para o uso de equipamentos e aplicativos digitais, além das regras de segurança, senhas e filtros apropriados para toda a família, incluindo momentos de desconexão e mais convivência familiar;
  • Encontros com desconhecidos on-line ou off-line devem ser evitados; saber com quem e onde seu filho está, e o que está jogando ou sobre conteúdos de risco transmitidos (mensagens, vídeos ou webcam), é responsabilidade legal dos pais/cuidadores;
  • Conteúdos ou vídeos com teor de violência, abusos, exploração sexual, nudez, pornografia ou produções inadequadas e danosas ao desenvolvimento cerebral e mental de crianças e adolescentes, postados por cyber criminosos devem ser denunciados e retirados pelas empresas de entretenimento ou publicidade responsáveis.

 

NÃO PRECISAMOS VOLTAR AO TEMPO DAS CAVERNAS!

 PRECISAMOS, APENAS, USAR DE MANEIRA INTELIGENTE AS EXTRAORDINÁRIAS FERRAMENTAS DIGITAIS DISPONÍVEIS HOJE.

 

Saiba mais:

* A Fábrica de Cretinos Digitais: os perigos das telas para nossas crianças. Michel Desmurget. São Paulo: Vestígio, 2023.

** Manual de Orientação – Departamento de Adolescência. Saúde de Crianças e Adolescentes na Era Digital. nº 1, Outubro de 2016. Disponível em:

https://www.sbp.com.br/fileadmin/user_upload/2016/11/19166d-MOrient-Saude-Crian-e-Adolesc.pdf

Manual de Orientação. Grupo de Trabalho Saúde na Era Digital (2019-2021). #MENOS TELAS #MAIS SAÚDE. Dezembro de 2019. Disponível em:

https://www.sbp.com.br/fileadmin/user_upload/_22246c-ManOrient_-__MenosTelas__MaisSaude.pdf

 

Relator:
Fernando MF Oliveira
Coordenador do Blog Pediatra Orienta da SPSP