Dr. Clóvis Duarte Costa *
Encoprese, em analogia com enurese, é o ato completo da defecação, em sua seqüência fisiológica, porém em local e/ou momento inapropriado, sendo, em geral, secundária a distúrbios psicológicos.
Na Literatura, com freqüência “soiling” e encoprese são apresentados como sinônimos, diferentemente do conceito preconizado em nosso meio, em que “soiling” é chamado de escape fecal e está associado à constipação intestinal. Em geral o termo encoprese vem sendo utilizado indistintamente para todo tipo de perda fecal, tanto para perda de origem psicogênica, como para a secundária à constipação intestinal crônica, acarretando muita confusão.
Torna-se importante distinguir os dois tipos de perda fecal, visto que a encoprese é decorrente de um distúrbio de origem psicogênica com fezes pastosas, sem constipação intestinal. Por outro lado, o escape fecal (soiling) ocorre pela constipação. Estas duas situações merecem tratamentos distintos: na encoprese indica-se encaminhamento ao Psicólogo/Psiquiatra, enquanto no escape fecal, se necessário, o apoio psicológico pode ser feito pelo próprio Pediatra e o tratamento será essencialmente clínico.
Segundo os critérios de Roma II (Rasquin-Weber et al, 1999), os distúrbios da evacuação de origem funcional apresentam-se como: disquesia do lactente, constipação intestinal funcional, retenção fecal funcional e escape fecal sem retenção. Nesse consenso Roma II a encoprese é denominada escape fecal funcional sem retenção e está incluída no grupo G4d. Por esse critério define-se encoprese como uma manifestação decorrente de um distúrbio emocional, geralmente na idade escolar. A inclusão de uma criança no diagnóstico de encoprese deve preencher os seguintes requisitos: evacuações em local e momento inadequado; ausência de doença estrutural e inflamatória; e ausência de sinais de retenção fecal.
Não há até o momento dados sobre a real prevalência deste distúrbio. Sabe-se, entretanto, que a encoprese é mais comum em meninos, numa proporção em torno de 3-4:1. De acordo com a literatura, nas investigações quanto às condições dos ambientes domésticos e familiares, são percebidas situações potencialmente facilitadoras da encoprese: perdas de entes queridos, mudanças de cidade, nascimento de irmãos, separação dos pais, assim como novas uniões deles, início do trabalho da mãe fora de casa, além de mudanças de escolas. É importante destacar, porém, que nenhuma criança se torna encoprética porque QUER, mas porque PODE, isto é, porque possui uma disposição constitucional para isto. É bom sempre se ter em mente que não existe o fator causal único, mas aspectos fisiológicos e do psiquismo da criança, integrados na dinâmica ambiental e familiar.
A resolução do problema pode ocorrer dentro de ambulatórios/consultórios, quando o pediatra oferece à criança um simples, mas efetivo apoio psicológico, sem necessidade imediata de encaminhamentos para atendimentos em serviço especializado. Esta conduta “psicoterápica” do pediatra pode ocorrer durante o atendimento ambulatorial, mas desde que tenha convicções firmes e certa base de conhecimento no manejo do mundo psíquico da criança. Por outro lado, quando da percepção de situações de maior complexidade, ou na ausência de resposta favorável faz-se necessária a parceria do pediatra com o psiquiatra no atendimento à criança, numa integração de esforços para o bem desta. Vale a pena deixar claro, também, que a criança, pela sua imaturidade psíquica, tem uma maior tendência, quando comparada ao adulto, em escolher o soma, o corpo, como porta-voz de suas dores emocionais; tendência esta que, em condições normais, vai sendo perdida (dentro do processo evolutivo da DESSOMATIZAÇÃO), à medida que ela vai se aproximando da idade adulta.
O manejo psicoterapêutico é de fundamental importância no tratamento da encoprese. Se a criança coopera, parece que as medidas psicológicas simples são suficientes, desde que haja aceitação da família. A ação terapêutica mostra-se benéfica quando os pais tornam-se capazes de relacionar o sintoma com o funcionamento da família, ao invés de associá-los exclusivamente com a criança.
De acordo com a Literatura, o tratamento pode durar de 6 meses a 3 anos sendo necessário um acompanhamento sério, contínuo e perseverante, e mesmo assim, aproximadamente 20% não melhoram. Grande parte dos pacientes pode ter resolução espontânea da encoprese, após um período de algumas semanas ou meses. Aquelas que persistem por vários anos são sempre formas graves pela sua freqüência, dimensão psicopatológica nitidamente perceptível e patologia familiar, tais como carência sócio-educativa e ausência do pai.
Referência bibliográfica: Rasquin-Weber A, Hyman PE, Cucchiara S, Fleisher DR, Hyams JS, Milla PJ, Staiano A. Childhood functional gastrointestinal disorders. Gut. 1999 Sep;45 Suppl 2:II60-8.
* Dr. Clóvis Duarte Costa
Professor Titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e responsável pelo Setor de Gastroenterologia Pediátrica da Faculdade de Ciências Médicas da PUCSP-Campus Sorocaba, SP; Membro do Departamento de Gastroenterologia da SPSP.
Texto recebido em 20/02/2008. Departamento Científico de Gastroenterologia da SPSP – gestão 2007-2009 (Presidente: Dr. Mauro Toporovski)