Efeito Mateus

Efeito Mateus

“Sai da frente da TV e vai ver o céu, menino”, conclamava a vovó, incomodada com o tempo que o netinho estava parado diante de uma tela.  Ah! A vovó não aceitava que o neto ficasse “sem gastar energia”, “sem interagir com a natureza”, “sem brincar com os amigos”. Desconfiava que tinha alguma coisa errada: “tem caroço nesse angu”.

Hoje, o caroço nesse angu tem o nome de ‘Efeito Mateus’.

O “Efeito Mateus” é um fenômeno observado em estatísticas e análises econômicas, que descreve como as diferenças e desequilíbrios tendem a se ampliar durante períodos de crescimento econômico ou recuperação após uma crise.

O termo deriva de uma passagem do Novo Testamento da Bíblia cristã, no Evangelho de Mateus, onde Jesus diz: “Pois a quem tem, mais será dado, e terá em abundância. Mas a quem não tem, até o que tem lhe será tirado”. Essa passagem é frequentemente interpretada como uma reflexão sobre a dinâmica das desigualdades sociais. Em períodos de crescimento econômico as desigualdades podem se agravar, perpetuando um ciclo sem fim e aumentando as disparidades sociais.

Michel Desmurget* aplica esse conceito ao analisar a importância dos efeitos negativos no desenvolvimento cognitivo e emocional das crianças, em especial na idade entre 0 e 6 anos, causados pela exposição inadequada às telas. Nessa faixa etária ocorre um enorme crescimento do tecido neural, extraordinário na formação de sinapses, fundamentais para o processo de aprendizagem e memorização.

A analogia se estabelece ao afirmar que o comprometimento do crescimento e maturação desse sistema, nessa faixa etária, determina um patamar para aquisições futuras aquém do que poderia ter sido estabelecido. Portanto, quaisquer fatores que interfiram nesse desenvolvimento, sequestram oportunidades, são “ladrões de tempo oportuno e insubstituível”.

As telas são descritas como as “grandes vilãs” quanto ao uso desse bem primordial e essencial – o tempo. Elas competem, nas 24 horas do dia, com outras utilizações melhores e mais saudáveis para o desenvolvimento infantil.

 

Esse é o ponto.

 

É uma falácia bastante disseminada que uma criança que é estimulada ao uso precoce das diversas mídias terá uma performance melhor em sua vida futura, tanto acadêmica, quanto profissional. Podemos afirmar, sem risco de errar, que essa melhora, por exemplo com o treinamento continuado nos videogames, produz apenas melhores jogadores de videogames, sem repercutir em outras habilidades.

O que é essencial é a qualidade dos estímulos recebidos por uma criança. Nenhum programa de TV, como Vila Sésamo, Peppa Pig ou equivalente, será um estímulo melhor do que a criança brincar com jogos de encaixar, multicoloridos, contando com a interação de um adulto que as supervisione.

É a tese do livro de Michel Desmurget: “As crianças precisam que falemos com elas, leiamos histórias para elas, que ganhem e leiam livros. Elas precisam se “entediar”, “ter tempo para não fazer nada”, brincar, montar quebra-cabeças, construir casas com blocos, correr, pular, cantar. Elas necessitam desenhar, praticar atividades físicas, ouvir músicas, tocar instrumentos, etc. Todas essas atividades (e muitas outras semelhantes) constroem seu cérebro de forma mais segura e eficaz do que qualquer tela recreativa. Dito de outra maneira, a criança não se tornará um deficiente no mundo digital porque não foi exposta às telas durante os seis primeiros anos de sua vida. Ao contrário. O que ela desenvolverá longe das telas a ajudará a melhor utilizar o que o digital pode oferecer de positivo”.

Há os que subestimam, ou não acreditam nisso. Resgato, como alerta, uma frase veiculada pela Academia Americana de Pediatria: “Se não sabemos que algo é bom e há razões para acreditar que é mau, por que fazê-lo?” (**)

Listo para terminar, os principais problemas médicos, relacionados com a exposição inadequada às telas, que podem afetar a saúde das crianças e adolescentes:

  • Dependência digital e uso problemático das mídias interativas;
  • Problemas de saúde mental: irritabilidade, ansiedade e depressão;
  • Transtornos do déficit de atenção e hiperatividade;
  • Transtornos do sono;
  • Transtornos de alimentação: sobrepeso/obesidade e anorexia/bulimia;
  • Sedentarismo e falta da prática de exercícios;
  • Bullying & cyberbullying;
  • Transtornos da imagem corporal e da autoestima;
  • Riscos da sexualidade, nudez, sexting, abuso sexual, estupro virtual;
  • Comportamentos autolesivos, indução e riscos de suicídio;
  • Aumento da violência, abusos e fatalidades;
  • Problemas visuais, miopia e síndrome visual do computador;
  • Problemas auditivos e PAIR (perda auditiva induzida pelo ruído);
  • Transtornos posturais e musculoesqueléticos;
  • Uso de nicotina, vaping, bebidas alcoólicas, maconha, anabolizantes e outras drogas.

 

Saiba mais:

 

* A Fábrica de Cretinos Digitais: os perigos das telas para nossas crianças. Michel Desmurget. São Paulo: Vestígio, 2023.

** Falck RS et al. What is the association between behaviour and cognitive function? A systematic review. British Journal of Sports Medicine, 2017; 51.

 

Relator:

Fernando MF Oliveira
Coordenador do Blog Pediatra Orienta da SPSP