Bater em crianças fez parte da tradição de educação durante décadas. Não são poucos os livros de autobiografia ou romances que aludem às surras e maus-tratos corporais e psicológicos como tendo marcado de forma duradoura suas memórias, com prejuízos psíquicos e no modo de se relacionarem.
Quando na idade adulta, essas crianças educadas com violência física têm condição de pensar sobre esses episódios, reconhecem com tristeza terem sido vítimas de sofrimento causado por seus próprios pais e professores, que se valiam do endosso cultural e social da suposta “educação” para replicar e descontar em seus filhos os sentimentos de raiva e frustração.
Acreditar que essa atitude faz parte de um passado distante talvez seja um dos grandes equívocos que a pandemia tem revelado, ao se observar o aumento considerável nos índices de violência familiar, trazendo à tona novamente discussões sobre a inadequação desse tipo de conduta e qual o lugar que o poder público deveria ocupar.
Um artigo recém-publicado revelou que, em pleno 2020, muitos países ainda não têm leis de proteção às crianças contra castigos físicos por pais e educadores, considerando não ser atribuição do Estado interferir no modo de educação das famílias. Essa é a realidade de países como Estados Unidos, Inglaterra, Austrália, Rússia e outros, representando ainda uma posição retrógrada que desconsidera que a educação recebida pelas crianças dentro de suas casas repercute no cidadão e na sociedade em geral. Ou seja, é sim assunto do Estado também.
No Brasil, felizmente, desde 2014, é proibido usar de punição física como forma de educação . Portanto, deixar as crianças à própria sorte tem sido uma das grandes preocupações em relação ao fechamento das escolas, que em geral funcionam como “fiscalizadoras” da violência contra crianças e adolescentes, atentas a marcas físicas que possam sugerir espancamento ou estados emocionais que possam revelar angústias e inseguranças.
A educação tem como função primordial oferecer à criança recursos para lidar com as limitações que a sociedade e a convivência com o outro impõem.
Maturidade emocional significa encontrar formas de conter emoções intensas como raiva, frustração, inveja, ciúme, etc. Assim, mesmo diante do sofrimento, o indivíduo é capaz de não reagir com atos de violência e sim encontrar meios de comunicar seus sentimentos através da linguagem.
É importante considerar que o castigo físico está longe de ser uma forma de educação, muito pelo contrário, ao bater em uma criança, o adulto mostra que só sabe resolver os conflitos pela força, sendo que isto não se constitui em aprendizado para conter os impulsos mais primitivos – que são próprios da natureza humana no início de vida.
Ao se exprimir com violência e crueldade, o adulto mostra sua incapacidade em lidar com limites e frustrações. Além de se revelar imaturo, esta atitude para com a criança impossibilita que ela adquira ferramentas para se desenvolver na vida em comunidade, tornando-a vulnerável emocionalmente e pobre em ter e manter relacionamentos – isso pode ser a raiz de problemas futuros pessoais e sociais.
Ao considerar que nenhum adulto castiga corporalmente uma criança sem que esteja com raiva, frustrado e acuado pela impotência, está exercitando o poder de impor, através da força, a repressão pelo medo e não o de educar a partir do respeito, consideração e empatia pelo outro.
Por outro lado, é importante refletir que há o movimento oposto de crianças que batem em seus pais e fazem deles verdadeiros reféns de suas vontades. Se castigos corporais não são o meio de ajudá-los a se constituir como seres humanos maduros, a permissividade é tão nociva quanto. Esta forma de se expressar nada mais é do que a comunicação e o pedido a um adulto para ajudá-la e ensiná-la a conter seus impulsos.
A ausência de limites na educação muitas vezes é herança de pais que foram vítimas da violência física e, portanto, se abstêm de qualquer forma de contenção. Esta forma de não educar ou “deseducar” está totalmente errada. Como a criança e o adolescente podem se sentir ao serem investidos de poder absoluto? Inseguros e amedrontados! E, pior ainda, é não ter ninguém que possa ajudá-los a entender e aplicar os aspectos éticos da vida em sociedade.
Se o Estado não exerce sua função de legislar sobre a ética das relações em todos os grupos, abre brechas para que adultos imaturos exerçam crueldade para com os mais frágeis. Para nos tornarmos uma civilização madura em desenvolvimento permanente, precisamos de estruturas que garantam e deem acesso às crianças e adolescentes ao direito a ela e as ferramentas que possam sustentá-la.
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Relatora:
Dra. Denise de Sousa Feliciano
Presidente do Departamento Científico de Saúde Mental da SPSP