Dia Mundial de Conscientização da Anemia Falciforme

Dia Mundial de Conscientização da Anemia Falciforme

A doença falciforme (DF) é uma enfermidade genética e hereditária, com uma alta prevalência global, caracterizada pela predominância da hemoglobina S (HbS) decorrente da substituição de um aminoácido na cadeia β da globina. Os indivíduos homozigotos para esta mutação têm a hemoglobina SS e têm o diagnóstico de anemia falciforme. A DF engloba os pacientes homozigotos para o gene HbS, assim como a combinação desta HbS com outras hemoglobinas anormais, como a hemoglobinopatia C e D, resultando na hemoglobinopatia SC e SD. A combinação também pode ocorrer com um gene beta-talassêmico (Sβ0 ou Sβ+), caracterizada pela heterozigose para o gene da HbS, com características clínicas variáveis.1

Nascem aproximadamente por ano 300.000 a 400.000 crianças com hemoglobinopatias em todo o mundo, sendo que no Brasil esta estimativa de prevalência é de 70.000-100.000 indivíduos. A incidência de DF em recém-nascidos varia substancialmente entre os estados brasileiros, refletindo a sua heterogeneidade étnica. Em 2014 a incidência de DF foi calculada em 1:650 recém-nascidos triados no Estado da Bahia, 1:300 no Estado do Rio de Janeiro, 1:13.500 em Santa Catarina e 1:4000 em São Paulo. Em todo o País, em 2016, 1071 recém-nascidos tiveram o diagnóstico de DF e com uma estimativa de 30.000 indivíduos com diagnóstico de DF.1,2,3

A HbS formada apresenta diversas características físicas e químicas, que resultam no processo de falcização. Esta HbS é uma hemoglobina anormal, que em determinadas situações pode ocasionar o encurtamento da vida média dos glóbulos vermelhos. As alterações estruturais levam à formação da hemácia em foice, resultando nas crises vasoclusivas dolorosas (CVO), acidente vascular cerebral (AVC) e síndrome torácica aguda (STA), além de complicações crônicas nos diversos órgãos e sistemas.4

Em 2001, o Ministério da Saúde criou o Programa Nacional de Triagem Neonatal (Portaria GM/MS n. 822, de 6 de junho de 2001), cuja missão era promover, implantar e implementar a política de triagem neonatal no âmbito do SUS, visando o acesso universal, integral e equânime, com foco na prevenção, na intervenção precoce e no acompanhamento permanente das pessoas com as doenças incluídas no programa. Então, a partir dessa data, foram incluídas no teste do pezinho a anemia falciforme e outras hemoglobinopatias. A doença falciforme (DF) é uma prioridade para os sistemas de saúde. A triagem neonatal, além de permitir o diagnóstico precoce, faz a integração com um programa de atendimento multidisciplinar e multiprofissional, coleta dados sobre resultados clínicos, criando registros e desenvolvendo protocolos compartilhados para atendimento integral de todos os recém-nascidos afetados, aumentando a conscientização do público sobre a DF, bem como promovendo uma educação voltada para a condição dos profissionais de saúde, gestores e agentes de saúde. Com a triagem abrangendo mais de 90% do território nacional, a história natural da DF no Brasil foi mudando ao longo dos anos com o diagnóstico precoce, que reduziu a morbimortalidade, promoveu maior sobrevida e melhorou a qualidade de vida das pessoas. Com o uso da penicilina e a vacinação antipneumocócica, o acompanhamento coordenado e a educação dos pais, iniciou-se uma mudança no cenário da DF.5

 

Características clínicas

Os pacientes com DF podem apresentar episódios recorrentes de CVO, levando a eventos dolorosos e internações frequentes para o manejo e tratamento da dor, com comprometimento na qualidade de vida.  Pode se iniciar por volta dos 6 meses de vida, com intensidade variável e duração de horas até vários dias. A dactilite é a CVO inicial em bebês que envolve os ossículos das mãos e dos pés (síndrome mão-pé). O dorso das mãos e/ou dos pés fica edemaciado e muito doloroso. Pode haver recorrência até os 3 anos de idade, sendo que 60% dos pacientes serão acometidos entre 6 meses e 2 anos de idade. Sua manifestação correlaciona-se com maior gravidade da doença. Nas crianças mais velhas, a CVO afeta os ossos longos das extremidades, bem como o tórax e as costas. Hipóxia, desidratação, infecção e exposição ao frio são gatilhos comuns. Priapismo é a ereção dolorosa do pênis que pode acontecer na forma de episódios breves e/ou recorrentes ou de episódios longos, com risco de impotência sexual (mais de 6 horas).6

As complicações pulmonares, tanto agudas como crônicas, são frequentes no paciente com DF e representam importante causa de morbidade e mortalidade. O termo STA é utilizado para caracterizar o evento agudo pulmonar, que consiste em febre, sintomas respiratórios (dispneia, taquipnéia ou dor torácica) e infiltrado pulmonar recente observado na radiografia de tórax. Pode ser causada por infecções, edema pulmonar, oclusão vascular e hipoventilação. O tratamento deve ser instituído precocemente devido à elevada morbimortalidade. É uma complicação aguda muito frequente, sendo a segunda causa de hospitalização, responsável por mais de 25% dos óbitos decorrentes da DF. Aproximadamente metade dos pacientes, em algum momento da vida, apresentarão um episódio de STA.7

O infarto cerebral é uma complicação que ocorre no paciente com DF e pode se manifestar como AVC, que inclui o ataque isquêmico transitório (sinais neurológicos com resolução em 24 horas), o AVC isquêmico completo (com sinais neurológicos persistentes por mais que 24 horas), o AVC isquêmico silencioso (infarto cerebral silencioso, que pode ser observado na ressonância magnética), e o AVC hemorrágico (mais prevalente em adultos). No episódio agudo de um AVC isquêmico completo está indicada a transfusão sanguínea, visando diminuir rapidamente a quantidade de HbS. A transfusão sanguínea regular reduz o risco de um AVC nos pacientes com hemoglobina SS e Sb0 talassemia e está indicada para todos os pacientes com DF após o primeiro episódio de AVC isquêmico completo, com o intuito de diminuir a chance de recorrência. O tratamento adequado da sobrecarga de ferro é primordial no prognóstico a longo prazo. O doppler transcraniano (DTC) mede a velocidade de fluxo sanguíneo nas artérias cerebrais e é uma ferramenta importante para detectar o risco de um AVC em crianças com DF.8,9As infecções são complicações agudas frequentes na DF e, entre elas, as bacterianas se destacam porque podem precipitar CVO, ocasionam hospitalização e são algumas das principais causas de óbito na DF. O uso profilático da penicilina já é amplamente conhecido como uma medida necessária para as crianças menores de 5 anos porque previne complicações infecciosas graves, como sepse, meningite, pneumonia, causadas principalmente pelo pneumococo.9O sequestro esplênico é o aprisionamento das células sanguíneas no interior do baço, com aumento súbito das suas dimensões e queda significativa da hemoglobina. Não se sabe ao certo qual é o mecanismo que resulta no sequestro, mas pode ser acompanhado de processos infecciosos, virais, bacterianos e STA. A esplenomegalia ocorre por acúmulo de sangue no baço. O tratamento do sequestro esplênico consiste na transfusão de concentrado de hemácias, que deve ser instalada o mais precocemente possível.9As úlceras de pernas aparecem principalmente após a adolescência, frequentemente próximo aos tornozelos e podem levar muito tempo para que ocorra uma cicatrização completa. 

Tratamento
O plano de tratamento de cada paciente difere de acordo com os sintomas. A Hidroxiuréia (HU) é indicada no tratamento de muitos pacientes com DF. Este medicamento tem a finalidade de reduzir a morbidade e melhora na prevenção da doença crônica, além da diminuição da mortalidade e das complicações agudas.10,11O transplante de medula óssea em pacientes com DF tem como objetivo restabelecer a produção normal de hemácias, sendo um método curativo, com indicações precisas.Novas alternativas terapêuticas estão sendo estudadas, visando melhorar a qualidade de vida dos pacientes com DF. 

Referências

 

  1. Ministério da Saúde (Brasil), Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Atenção Hospitalar e de Urgência: Doença Falciforme- Hidroxiuréia- Uso e Acesso. Brasília: Editora do Ministério da Saúde, 2014. 54p.
  2.  Kato GJ, Piel FB, Reid CD, Gaston MH, Ohene‐Frempong K, Krishnamurti L, Smith WR, Panepinto JA, Weatherall DJ, Costa FF, Vichinsky EP. Sickle cell disease. Nat Rev Dis Primers. 2018; 18010 (4):1-22.
  3. Lobo CLC, Nascimento EM, Jesus, LJC, Freitas TG, Lugon, JR, Ballas SK. Mortality in children, adolescents and adults with sickle cell anemia in Rio de Janeiro, Brazil. Rev Bras Hematol Hemoter. 2018; 40(1): 37-42.
  4. Steinberg MH, Rodgers GP, Pathophysiology of Sickle Cell Disease: Role of Cellular and Genetic Modifiers. Semin Hematol. 2001; 38:299-306.
  5. Calegare SR. Teste do pezinho para doenças hematológicas In: Miriam Veronica Flor Park; Andrea Angel. (Org.). Hematologia e Hemoterapia Pediátrica- um guia prático. 1ed.Rio de Janeiro: Atheneu, 2022, v. 1, p. 67-72.
  6. Veríssimo MPA. Crise vaso-oclusiva, síndrome torácica aguda, priapismo e crise aplástica In: Miriam Veronica Flor Park; Andrea Angel. (Org.). Hematologia e Hemoterapia Pediátrica- um guia prático. 1ed.Rio de Janeiro: Atheneu, 2022, v. 1, p. 80-82.
  7. Braga JAP, Logetto SR, Campanaro CM, Lyra IM, Viana MB, Anjos ACM, Figueira CMG, Araújo PIC. Doença Falciforme. In: Hematologia e Hemoterapia Pediátrica: Série Atualizações Pediátricas da Sociedade de Pediatria de São Paulo. São Paulo: Editora Atheneu; 2014. p.139-162
  8. Adams RJ, McKie VC, Hsu L, Files B, Vichinsky E, Pegelow C et al. Prevention of a first stroke by transfusions in children with sickle cell anemia and abnormal results on transcranial doppler ultrasonography. N Engl J Med. 1998; 339(1): 5-11.
  9. Angel A, Park MVF. Acidente vascular cerebral, infecção e sequestro esplênico. In: Miriam Veronica Flor Park; Andrea Angel. (Org.). Hematologia e Hemoterapia Pediátrica- um guia prático. 1ed.Rio de Janeiro: Atheneu, 2022, v. 1, p. 82-93.
  10. Steinberg MH, Barton F, Castro O, Pegelow CH, Ballas SK, Kutlar A et al. Effect of hydroxyurea on mortality and morbidity in adult sickle cell anemia: risks and benefits up to 9 years of treatment. 2003; 289(13): 1645-1651.
  11. Hankins JS, Helton KJ, McCarville MB, Li CS, Wang WC, Ware RE. Preservation of Spleen and Brain Function in Children with Sickle Cell Anemia Treated with Hydroxyurea. Pediatr Blood Cancer. 2008; 50: 293-297.

 

Relatora: Andrea Angel
Departamento Científico de Hematologia e Hemoterapia da Sociedade de Pediatria de São Paulo

Fonte: tussiksmail | depositphotos.com