“O que é ser homem hoje?”
“A vida nos interroga” – esta frase, utilizada reiteradamente por Victor Frankl, criador da Logoterapia, é sempre instigante, pois nos convida à reflexão. A vida pergunta. Temos que responder individualmente – como pessoa e coletivamente – como espécie humana.
A cultura é, ao mesmo tempo, a lente com a qual interpretamos e compreendemos este assunto, quanto ao viés determinante das diversas opiniões sobre o tema. Dentre as inúmeras perguntas que a vida nos faz, está esta: “Que é ser homem hoje?” A palavra homem aqui, se refere a gênero e não à espécie humana.
A resposta não é simples e nem óbvia.
Para analisar esta pergunta, duas aves podem nos ajudar: o Guará – brasileira, encontrada principalmente nos manguezais da costa setentrional da América do Sul e o Flamingo – encontrado em várias partes do mundo.
Ambos biologicamente nasceram com características próprias que identificam cada espécie e, no entanto, a grande marca identificadora, que sobressai para os olhares externos, é a sua cor, que não é característica biológica, mas sim sua “marca registrada”. Esse fenótipo é fruto do ecossistema em que habitam, da disponibilidade da comida rica em caroteno, dada pela oferta generosa de crustáceos nos mangues – para os guarás, e de algas e crustáceos, nos alagados, lagoas, manguezais, estuários e algumas regiões beira-mar – para os flamingos. A grande quantidade presente desse pigmento (caroteno) na dieta é a responsável pela cor avermelhada dessas aves.
No caso dos humanos, a biologia não explica uma série muito grande de peculiaridades da nossa espécie, nem do nosso comportamento. A cultura – fruto da linguagem – gera símbolos que auxiliam a conhecer e interpretar o mundo, a vida. Esse fato explica por que a resposta àquela pergunta acima é complexa. É através da lente da cultura que essa resposta poderá ser dada.
Fica implícita na pergunta “O que é ser homem hoje?”, a possibilidade de entender que o homem de ontem é diferente do homem de hoje e, por inferência, este também será diverso do homem de amanhã. Esta pergunta se refere à questão comportamental do homem e não ao seu aspecto biológico evolutivo. Em outras palavras: quais são os papéis do homem na sociedade de hoje? Aqui entra o universo da cultura.
A construção da masculinidade é complexa e multifacetada, sendo moldada por normas culturais, crenças, valores e expectativas em uma determinada sociedade e num determinado tempo. O que é considerado “masculino” em uma cultura pode ser diferente do que é valorizado em outra.
Ser homem na ‘cultura antiga’ consistia em ser o provedor econômico da família; ser o protetor da família – se necessário, “dar porrada”; ser o macho reprodutor e pegador; tomar a iniciativa nas relações sexuais; ser conquistador; fazer os trabalhos braçais; ser o tomador de decisões; impor regras e colocar limites para o outro e para si mesmo; enfrentar, racionalmente, situações e tentar não se desesperar; conquistar respeito e admiração (poder); ter corpo robusto e falar com voz grossa; ser valente e corajoso; ser livre, astuto e dono de si.
Através desse estereótipo, culturalmente construído, foi gestado um fruto indesejado, que colhemos à larga, nos dias de hoje – o feminicídio, o abuso e assédio sexual, a homofobia, a pedofilia, a segregação de gênero, entre outras mazelas.
“O Homem com H”, da música de Antônio Barros, de 1981, magistralmente interpretada por Ney Matogrosso à época da banda “Secos & Molhados”, retrata muito bem esse estereótipo da cultura dita “machista”:
“Nunca vi rastro de cobra / Nem couro de lobisomem / Se correr o bicho pega / Se ficar o bicho come / Porque eu sou é home / Porque eu sou é home / Menino eu sou é home / Menino eu sou é home / E como sou!
Quando eu estava pra nascer / De vez em quando eu ouvia / Eu ouvia a mãe dizer / Ai meu Deus como eu queria / Que esse cabra fosse home /
Cabra macho pra danar / Ah! Mamãe aqui estou eu / Mamãe aqui estou eu / Sou homem com H / E como sou!
Eu sou homem com H / E com H sou muito home / Se você quer duvidar
Olhe bem pelo meu nome / Já tô quase namorando / Namorando pra casar
Ah! Maria diz que eu sou / Maria diz que eu sou / Sou homem com H
E como sou!
Cobra! Home! / Pega! Come!”
O homem, antes de mais nada, é “ser humano” e, como tal, possui fragilidades, pontos fortes e fracos. Nos dias atuais é “coisa de homem”: entrar em contato com as emoções e buscar um encontro genuíno com o outro, que pode ser o filho, o amigo, a mulher; permitir-se deliberar não ‘paquerar ou ficar’ por obrigação, não pagar todas as contas e, mesmo assim, continuar se sentindo um homem forte e não um ‘frouxo’; ser sensível aos sentimentos dos outros, perceber as sutilezas das relações humanas, ser empático; participar na criação dos filhos e nas tarefas domésticas; respeitar e promover a igualdade de gênero.
Finalizo com a música “Man in the Mirror“, de Michael Jackson, que fala da importância de refletir sobre si mesmo e fazer mudanças pessoais para tornar o mundo um lugar melhor:
“I’m starting with the man in the mirror / I’m asking him to change his ways / And no message could’ve been any clearer / If they wanna make the world a better place / Take a look at yourself and then make a change.”
“Estou começando com o homem no espelho / Estou pedindo a ele que mude de atitude / E nenhuma mensagem poderia ter sido mais clara / Se eles querem fazer do mundo um lugar melhor / Dê uma olhada em si mesmo e faça uma mudança.” (tradução livre)
Este é um chamamento para que busquemos uma sociedade mais justa e igualitária.
Relator:
Fernando MF Oliveira
Coordenador do Blog Pediatra Orienta da SPSP