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Autor: Dr. Mário Roberto Hirschheimer
Presidente da Sociedade de Pediatria de São Paulo
Texto divulgado em 12/06/2015
O Pediatra é o único médico especialista em pessoas na fase de crescimento e desenvolvimento que exerce também um papel de educador junto à família, capaz, assim, de atuar de forma eficaz para orientar o desenvolvimento de um adulto saudável. Para bem desempenhar tais competências, o Pediatra necessita de qualificação profissional, compromisso, lealdade, disponibilidade, vontade e tempo.
É dos poucos profissionais que atuam em todos os níveis de atenção à saúde: promoção, proteção e recuperação da saúde, com intervenções diagnósticas, terapêuticas, preventivas e educativas. No atendimento pediátrico devem ser levados em conta aspectos como evolução do crescimento, estado nutricional, história alimentar, situação vacinal, desenvolvimento neuropsicomotor, desempenho escolar, qualidade e quantidade de sono, acuidade visual e auditiva, saúde bucal, entre outros parâmetros de saúde e desenvolvimento ao longo do período que se inicia com o nascimento e se prolonga até a maturidade da vida adulta. Portanto, mesmo não utilizando tecnologia de custo elevado, o Pediatra exerce uma atividade de alta complexidade!
A relação médico-paciente adquire peculiaridade e intensidade diferentes na área da Pediatria. Ela é uma das especialidades médicas na qual mais a afetividade e a empatia são determinantes importantes para o sucesso do tratamento. Daí uma assistência segmentada, orientada por múltiplos profissionais em diversos serviços, não ser o ideal, exatamente porque afeta um elemento essencial – a confiança. Confiança, entretanto, não se impõe – se conquista!
Um atendimento pediátrico adequado significa, obrigatoriamente, que o binômio paciente-família foi impactado de maneira positiva neste relacionamento profissional-pessoal. Quando qualquer uma das partes deste binômio não é satisfeita em suas necessidades haverá uma ruptura das condições ideais, de maneira que este desequilíbrio repercutirá no todo.
Exemplos práticos: não adianta a criança ser bem examinada e receber uma receita com prescrição adequada, se a mãe não assimilou o conteúdo da informação, ou não teve a sua ansiedade amenizada por palavras esclarecedora, ou se aquela receita efetivamente não for aplicada, seja por falta de recursos financeiros da família ou porque o sistema de saúde não garantiu essa oferta.
No atendimento das emergências e urgências pediátricas, o Pediatra requer uma qualificação para atender inúmeras demandas e ser capaz de entender bastante (não tudo) de todas (ou muitas) as áreas da medicina, que lhe permite transitar com facilidade e qualidade pelas enfermidades mais frequentes, resolvendo a maioria dos casos de modo adequado e ágil, mas sem pressa e com cautela. Isto requer muito estudo, vigor físico e equilíbrio emocional.
Considerando que a definição rigorosa do que vêm a ser urgência e emergência é bastante difícil e a demanda de atenção no Pronto Socorro abrange também os pacientes que não encontram acolhimento em outros serviços (consultórios, ambulatórios, unidades básicas de saúde etc.) com queixas crônicas e sociais, é necessário que o Pediatra proceda à análise criteriosa e utilize bom senso para reconhecer o grau de severidade que envolve cada situação. Como o conceito de urgência e emergência difere entre profissionais da saúde e pacientes, um atendimento pediátrico é mais demorado que a maioria do de outras especialidades, pois, quase sempre, há dois problemas a atender: um é o explicitado pela queixa e o outro é oculto, representado pela ansiedade dos acompanhantes (mães, avós, etc.). Esta também tem que ser entendida e atendida com muita paciência e sensibilidade. Pais imaturos, ansiosos, agressivos, precisam ter suas demandas acolhidas, para que esse comportamento não repercuta negativamente na saúde do filho.
A qualificação de um Pediatra é, portanto, uma tarefa de enorme responsabilidade, que não vem sendo contemplada pela sociedade com uma recompensa proporcional ao empenho requerido. Sequer é considerado o significativo ganho econômico para os sistemas de saúde, pois o bom atendimento pediátrico acarreta redução de internações hospitalares e da utilização de procedimentos diagnósticos e terapêuticos, com grande economia de recursos financeiros, e representa, acima de tudo, um avanço imensurável na qualidade de vida da infância, da adolescência e, consequentemente, da população em idade produtiva da sociedade brasileira. Não é exagerado dizer que um bom atendimento pediátrico pode prevenir doenças geriátricas.
“Pronto-socorrização” do atendimento
Com a incorporação da mulher no mercado de trabalho na sociedade contemporânea, o Pronto Socorro passou a ser utilizado como um serviço de conveniência para as famílias. Lá não se requer a marcação de consultas, há a expectativa de um atendimento ágil e o mito de que ele será resolutivo. Tais famílias não levam em consideração que em um Pronto Socorro não ocorre um atendimento pediátrico adequado, pois é um tipo de serviço para reconhecimento e tratamento inicial de uma condição clínica e não para um atendimento pediátrico integral. Não há compromisso de quaisquer das partes entre si, que termina com o final daquele atendimento. Aliado ao sacrifício de ter de trabalhar nas madrugadas, finais de semana e feriados e à insegurança em muitos locais de trabalho (quase 70% dos pediatras já foram vítimas de alguma forma de violência em prontos-socorros), tal descompromisso vem contribuindo para uma progressiva frustração profissional, manifestada pela síndrome do burnout, afastando muitos Pediatras da especialidade.
Exigência de produtividade
O atendimento pediátrico deveria contemplar a abrangência de sua ação: diagnóstico, tratamento e orientações incluindo esclarecimentos para recuperação e promoção da saúde e prevenção de doenças. Como fazer tudo isso, sem esquecer-se de trocar o lençol da maca e lavar bem as mãos entre uma consulta e outra, mantendo a produtividade exigida na maioria dos serviços de, pelo menos, quatro atendimentos por hora (ou até 15 minutos por atendimento)? A frustração de não conseguir fazer o que deve para cumprir seu dever também tem afastado muitos médicos desta área de atividade.
Acrescente-se a isso que o pagador dos serviços, quase nunca o usuário (paciente e sua família), sequer está preocupado com a qualidade e resolutividade de tal atividade, desde que a produtividade, medida somente pelo número de atendimentos realizados, seja atingida. A resolutividade nunca é avaliada e a não-resolutividade acaba aumentando o número de atendimentos!
Diminuição do interesse pela Pediatria como especialidade
Ao analisar a falta crônica de Pediatras para o atendimento à população, deve-se considerar que 29,5% da população do Estado de São Paulo estão na faixa etária de atuação do Pediatra. São mais de 12 milhões de crianças e adolescentes (IBGE – censo de 2010).
De acordo com a Pesquisa Demográfica Médica no Brasil, realizada pelo CREMESP em 2012 e divulgada em 2013, havia 8.705 Pediatras no Estado de São Paulo (7,88% do total), sendo a Pediatria a especialidade com maior número de médicos especialistas.
Assim haveria cerca de um Pediatra para 1.500 crianças ou 0,67 Pediatras para 1.000 crianças e adolescentes no Estado de São Paulo.
Em 2014 a SPSP encomendou uma pesquisa ao Instituto de Pesquisas Datafolha. Se tivesse de descrever, de modo simplista, como é o perfil do Pediatra paulista, diria que é uma mulher (73%), com média de idade de 47,5 anos (a média entre todos os médicos é 46,2 anos), que trabalha em três locais onde exerce funções diferentes, com uma jornada de trabalho de 50 horas semanais, com atividades noturnas (51%) e em fins-de-semana e feriados (61%) e já sofreu alguma forma de violência durante sua atividade profissional (64%). Somente 50% dedicam apenas 14 horas semanais para atender consultas agendadas em consultórios ou ambulatórios. Deduz-se disso, que a principal atividade do Pediatra do Estado de São Paulo é na forma de plantões em Prontos Socorros, Serviços de Neonatologia e UTIs Pediátricas e o número de horas disponibilizado pelos Pediatras para atenderem em consultórios ou ambulatórios está diminuindo.
Entre os estudantes de medicina, a busca pela especialidade está em baixa. De acordo com dados da Sociedade Brasileira de Pediatra, de 1997 a 1999, houve um aumento de 60,7% de candidatos no Concurso para obtenção do Título de Especialista em Pediatria, mas, a partir de então, houve uma queda de 45,5% (com discreta recuperação nos últimos dois concursos). É importante comentar que, neste período, houve significativo aumento do número de formandos em medicina no país.
Isso reflete um fenômeno do mercado de trabalho relacionado principalmente à remuneração dos profissionais. Como não existem procedimentos que acrescentem remuneração ao atendimento pediátrico, uma vez que a Pediatria é essencialmente uma especialidade clínica, outras áreas têm atraído mais os jovens médicos. Não se pratica uma remuneração adequada, proporcional à duração de uma consulta pediátrica (mais longa que as demais). Além disso, em grande número dos locais de trabalho, não se oferecem condições de área física, equipamentos e materiais adequados à prática pediátrica. Os planos de cargos e salários na rede pública (Estado e Municípios) não têm se mostrado atraentes.
Remuneração justa do Pediatra
Para que o Pediatra exerça de forma competente seu trabalho é essencial que sua função seja reconhecida pela sociedade e esta propicie remuneração condizente com sua atuação. Para isto, a sociedade precisa estar ciente que este profissional é insubstituível, reconhecendo que, para o atendimento da criança, não basta conhecimento da doença, mas sim das especificidades deste ciclo de vida e as repercussões da doença no crescimento e desenvolvimento deste paciente. Este reconhecimento permitiria ao Pediatra uma qualidade de vida adequada e asseguraria a educação médica continuada com atualização constante e reflexos na prática médica diária.
O reconhecimento do Pediatra deve independer da fonte financiadora do atendimento, ou seja, deve ocorrer tanto quando ela atua no setor público quanto no setor privado, no qual as empresas, na busca do lucro, têm aviltado a remuneração médica, não incentivando uma atenção qualificada de seus usuários.
Chamo atenção para o Atendimento Ambulatorial em Puericultura (código na CBHPM da AMB 1.01.06.14-6), que faz parte do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde da ANS desde janeiro de 2014. Ele é remunerado duas vezes mais que uma consulta simples em consultório no horário normal ou preestabelecido. O pagamento deste procedimento por parte de todas as operadoras de saúde complementar deveria ser obrigatório, mas são raríssimas as operadoras o reconhecem. Tal pagamento diferenciado, talvez, estimulasse mais médicos a voltar a praticar a puericultura, tornando o atendimento em consultório pediátrico mais compensador, estimulando a atividade, com inequívoco benefício para toda a coletividade.
O Código de Ética Médica, no seu Capítulo I – Princípios Fundamentais – Inciso III diz: “Para exercer a Medicina com honra e dignidade, o médico necessita ter boas condições de trabalho e ser remunerado de forma justa” e, no inciso XV: “O médico será solidário com os movimentos de defesa da dignidade profissional, seja por remuneração digna e justa seja por condições de trabalho compatíveis com o exercício ético-profissional da Medicina e seu aprimoramento técnico-científico”.
Foi preciso acontecer uma carência de Pediatras para preencher as vagas necessárias para um atendimento mínimo para o problema ser discutido e chamar a atenção dos responsáveis pelas políticas de saúde. A lei da oferta e da procura funcionou e hoje se procura Pediatras nos serviços públicos e privados.
É oportuno comentar que vem ocorrendo um aumento da oferta de empregos para Pediatras em virtude da necessária implantação de unidades de terapia intensiva (UTIs) neonatais e pediátricas, considerando a ainda carente oferta destas modalidades de assistência à população.
Embora a remuneração do Pediatra tenha melhorado nos últimos anos, isto ocorreu principalmente nos prontos-socorros e UTIs de serviços privados, absorvendo a quase totalidade dos profissionais que estão ingressando no mercado de trabalho. É preciso corrigir as deficiências atuais, inclusive a participação inadequada de outros profissionais (médicos não Pediatras e até não médicos) no atendimento de crianças e adolescentes, ação que deve ser exclusiva da Pediatria e dos Pediatras. Isso é mais comum nos serviços terceirizados (como as OSS), nos quais os médicos mantêm vínculos por meio de contratos com pessoas jurídicas. As crianças e os adolescentes, assim como seus pais, querem e precisam ser atendidos na sua integralidade por Pediatras. As famílias reconhecem o trabalho dos Pediatras e o dia-a-dia mostra que Pediatras são médicos resolutivos, fundamentais para o bom resultado do sistema de saúde. A obrigação de todas as esferas de poder do país é garantir condições para que as nossas crianças tenham um atendimento adequado feito pelo Pediatra. Não podemos perder a oportunidade de corrigir os fatores de desestimulo, remuneração injusta e condições de trabalho precárias.
A plenária final do XI Encontro Nacional das Entidades Médicas – ENEM, em Junho 2007, recomendou um piso salarial para uma jornada de 20 horas semanais de trabalho. A Federação Nacional dos Médicos (FENAM) divulgou que, para o ano de 2015, tal piso salarial seria de R$ 11.675,94. O piso salarial incentiva que médicos talentosos desenvolvam e repassem conhecimentos adequados à realidade do país.
Desafio
O maior desafio é principalmente para a coletividade. A criança brasileira tem o direito à assistência médica qualificada e eficaz assegurado pela Constituição Federal (Artigo 227), sendo dever de o Estado prover os mecanismos para que os recursos direcionados à saúde sejam otimizados em seu benefício. Dar condições dignas de trabalho e estabelecer remuneração digna para médicos faz parte desse dever, considerando que é mais vantajoso pagar um bom médico do que gastar ao remediar.
Uma das finalidades da SPSP é promover a melhoria dos padrões da assistência à infância e à adolescência em nosso meio e das condições de trabalho e exercício profissional dos associados da SPSP. Para isso, colocamo-nos à disposição.
São Paulo, 09 de junho de 2015
Dr. Mário Roberto Hirschheimer
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