SPSP – Sociedade de Pediatria de São Paulo
Texto divulgado em 20/04/2020
Relator: Olberes Vitor Braga de Andrade
Presidente do Departamento Científico de Nefrologia Pediátrica da Sociedade de Pediatria de São Paulo
A doença relacionada ao novo coronavírus (COVID-19) apresenta síndromes clínicas diversas e com gravidade variável. A grande maioria das crianças desenvolvem quadros assintomáticos ou leves, sendo rara a mortalidade. Na população pediátrica, os relatos de envolvimento renal grave são escassos ou inexistentes. Assim, nossos comentários utilizam as evidências observadas basicamente na população adulta até o momento.
Como sabemos, adultos portadores de doença renal crônica e outras condições crônicas graves, tais como cardiopatias, asma não controlada, diabetes mellitus, doenças auto-imunes, entre outras, apresentam risco de comprometimento mais grave da COVID-19. Devido ao espectro muito grande de comprometimento renal, nem todas as crianças com problemas renais se encaixam nessa premissa. A preocupação se refere principalmente àquelas que utilizam imunossupressores e/ou apresentam o sistema imunológico comprometido e se aplica aos portadores de síndrome nefrótica, doentes renais crônicos em diálise e transplantados renais, os quais podem apresentar também outras comorbidades, tais como doenças metabólicas, doenças genéticas e vasculites.
A equipe médica e multidisciplinar deve orientar pais e cuidadores a entrar sempre em contato para rediscutir de forma individualizada, não só a condição de fator de risco, como também as medidas preventivas de contágio, a programação terapêutica, a racionalidade do reagendamento das consultas ambulatoriais eletivas, entre outras dúvidas. Neste contexto, devem ser reforçadas as orientações de se evitar a utilização de medicações potencialmente nefrotóxicas (como os anti-inflamatórios não-hormonais) e a manutenção da aderência medicamentosa prescrita, incluindo os medicamentos anti-hipertensivos. É fundamental manter a programação da terapia dialítica, evitando a perda de sessões de hemodiálise, por exemplo.
Análises recentes vêm demonstrando aumento da incidência de lesão renal aguda (LRA) entre os adultos graves com o novo coronavírus (SARs-COV-2), podendo chegar em torno de 15 a 20%, reservando um prognóstico mais desfavorável. Os mecanismos envolvidos são atribuídos à hipoperfusão renal, “tempestade de citocinas” e resposta imune inflamatória sistêmica não adaptativa, crosstalk entre os órgãos (síndrome cardiorrenal tipo 1 e síndrome pulmão-rim) e disfunção orgânica múltipla. Síndrome hemofagocítica e microangiopatia trombótica podem estar associadas também. A presença de choque séptico, nefrotoxicidade, entre outras comorbidades também contribuem para o quadro de LRA.
Evidências sugerem também a possibilidade de um comprometimento citopático viral direto. O tropismo renal no contexto da COVID-19 pode ser apoiado pelos relatos de hematúria, albuminúria e pelo isolamento do RNA viral na urina. Embora o SARs-COV-2 utilize para sua invasão celular o receptor ACE2, expresso não só nas células alveolares, mas também nos podócitos e células tubulares, existe grande controvérsia sobre o papel da modulação do sistema renina-angiotensina e aldosterona como fator de risco ou fator de proteção para a COVID-19. A recomendação atual é a de manutenção dos inibidores da enzima de conversão e dos bloqueadores do receptor da angiotensina 2 (IECA e BRA), embora outras alternativas possam ser discutidas e estabelecidas individualmente pela equipe médica.
Em termos de saúde pública, a necessidade crescente de terapias de substituição renal e outras técnicas de circulação extracorpórea é preocupante, considerando o risco potencial de saturação e esgotamento da estrutura, insumos e recursos humanos, o que podem limitar a atuação efetiva dos profissionais de saúde e dos nefrologistas. Outra grande preocupação se relaciona à rigorosidade da manutenção de protocolos de precaução e contágio durante os procedimentos hospitalares.
Toda a população e os pacientes portadores de doenças renais devem seguir as orientações dos órgãos do sistema de saúde e serviços de diálise locais quanto às precauções necessárias, incluindo evitar aglomerações, praticar o distanciamento social. As medidas comportamentais e de higienização devem ser redobradas, como a lavagem das mãos com água e sabão e/ou álcool gel e a utilização de máscaras faciais, conforme as recomendações do serviço de saúde. Embora exista a preconização atual do uso de revestimentos faciais de tecido para redução da propagação da COVID-19 em áreas com transmissão comunitária significativa, é importante lembrar da correta utilização e manipulação e que estes revestimentos faciais de tecidos caseiros não são máscaras e não substituem, isoladamente, as diretrizes para o combate ao coronavírus.
Protocolos e diretrizes com fluxogramas das instituições hospitalares e das sociedades médicas nacionais e internacionais estão sendo revisados continuadamente. Desta forma, a atualização científica e o cuidado com a assimilação e a divulgação das fake news são lembranças vitais para a boa condução e o enfrentamento desta pandemia.
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