Criança Segura – Brasil
Sociedade Brasileira de Pediatria
Sociedade de Pediatria de São Paulo
Texto divulgado em 05/06/2019
No dia 4 de junho, o presidente Jair Bolsonaro apresentou na Câmara dos Deputados um projeto de lei que, entre outras medidas, prevê eliminar a multa para os motoristas que transportarem crianças em veículos sem o uso dos dispositivos de retenção veicular infantil (bebê-conforto, cadeirinha e assento de elevação). Caso a nova regra seja aprovada, o motorista infrator receberá apenas uma advertência por escrito.
A Resolução nº 277/2008 do Contran, que determina a obrigatoriedade do uso dos dispositivos de retenção veicular para o transporte de crianças de até sete anos e meio de idade, entrou em vigor no Brasil em 2008. Entretanto, apesar dessa regra existir há mais de 10 anos, muitos responsáveis por crianças ainda deixam de usar esses equipamentos de proteção, mesmo correndo o risco de serem multados e terem seus veículos apreendidos.
De acordo com um estudo observacional realizado na cidade de São Paulo pela Iniciativa Bloomberg para Segurança Global no Trânsito, Johns Hopkins e USP, 47% dos motoristas não utilizam assentos de segurança infantil ao transportar crianças em veículos.
Esse dado é extremamente preocupante, pois os dispositivos de retenção veicular são a única forma segura de transportar crianças dentro de um veículo. Os bancos dos carros e os cintos de segurança são projetados para pessoas com mais de 1,45 m de altura (esta altura é atingida por volta dos 11 anos de idade). Sendo assim, para que a criança e o adolescente estejam de fato protegidos em caso de um acidente de trânsito, é essencial que utilizem o equipamento correto para sua idade, peso e altura. Esses dispositivos, quando usados corretamente, reduzem em até 71% o risco de morte em caso de colisão.
No Brasil, o trânsito é a principal causa de morte por causas externas de crianças e adolescentes de zero a 14 anos. Todos os dias, três pessoas dessa faixa etária morrem por esse motivo. A maioria desses óbitos é decorrente de acidentes de carro.
Especificamente na faixa etária de zero a nove anos, que inclui o grupo etário que deve utilizar os dispositivos de retenção veicular, em 2017, 40% das crianças que morreram em acidentes de trânsito eram passageiras de veículos. Naquele ano, 221 crianças perderam a vida e outras 579 foram internadas em estado grave só no SUS em razão de acidentes de carro. Muitas dessas crianças acabaram com lesões permanentes, que as acompanharão pelo resto de suas vidas.
Trata-se de consenso entre especialistas em segurança no trânsito, com embasamento em sólidas evidências científicas, que apenas campanhas educativas e ações de orientação por parte de profissionais não são suficientes para mudar comportamentos de forma efetiva e, assim, reduzir o número de mortes no trânsito. É preciso que a essas campanhas se aliem leis e fiscalização que garantam a obrigatoriedade do uso desses equipamentos.
É muito importante que toda a população entenda a importância de utilizar os equipamentos de proteção para crianças ao transportá-las em veículos, independentemente da penalidade de uma multa. Porém, na prática, o grande retrocesso que está sendo proposto, mediante afrouxamento dos dispositivos do Código de Trânsito Brasileiro, resultará na diminuição do uso desses equipamentos de proteção e aumentará muito o número de mortes de crianças brasileiras no trânsito.
Corroborando essa visão, basta examinar o último Relatório de Situação Global da Segurança no Trânsito, publicado pela Organização Mundial de Saúde, no final de 2018, que se baseia essencialmente na recomendação de que um número maior de nações adotem legislações mais rígidas e aplicação de multas pesadas aos infratores, com o objetivo de reduzir a velocidade dos veículos, reprimir o ato de beber e dirigir e aumentar as taxas de uso de cinto de segurança, dispositivos de retenção veicular infantil e capacetes de motociclistas. Essa publicação elogia o Brasil pelos progressos evidentes no controle do ato de beber e dirigir, amplamente baseados em aplicação rigorosa da legislação, mas critica o atraso das nossas leis no quesito proteção de crianças passageiras de veículos. É importante ressaltar que a nova proposta do governo traz recomendações sobre o transporte de crianças em automóveis que já estavam ultrapassadas havia muito quando a Resolução nº 277/2008 do Contran foi implementada.
Por isso, nós, organizações da sociedade civil que lutamos por um trânsito mais seguro para todos, somos contrários a essa proposta legislativa apresentada pelo presidente Jair Bolsonaro ao Congresso.
Aos congressistas que agora estão responsáveis por analisar essa proposta solicitamos: avaliem bem o possível impacto dessa medida, pois ela vai prejudicar de maneira irreversível o futuro de milhares de crianças e famílias brasileiras, além de elevar os custos dos atendimentos de crianças e adolescentes que conseguirem sobreviver ao momento inicial, após o grave trauma a que foram submetidos.
Exigimos nada mais do que o respeito à nossa Constituição Federal, que em seu artigo 227 assegura com absoluta prioridade os direitos de crianças e adolescentes, entre eles o direito à vida, à saúde e de proteção contra toda forma de negligência, os quais são responsabilidade compartilhada do Poder Público, das famílias e da sociedade como um todo. Por esse princípio constitucional, o cuidado com a infância e a adolescência deve ser considerado em primeiro lugar no âmbito de políticas, orçamento e serviços públicos. Assim, a proposta legislativa de alteração do Código de Trânsito Brasileiro contraria a regra da prioridade absoluta, ao colocar em risco a integridade e a vida de milhares de crianças e adolescentes.