As crianças crescem enquanto dormem?

As crianças crescem enquanto dormem?

Sociedade de Pediatria de São Paulo
Texto divulgado em 12/05/2022


Episódio 11: “A vovó já dizia que as crianças crescem enquanto dormem!”

Arthur Schopenhauer escreveu que “sono é para o indivíduo o mesmo que dar corda em um relógio”. Em tempo digital esta imagem analógica, mecânica, ainda serve para resgatar a importância fisiológica do sono para o indivíduo. Essa frase evoca, também, a noção conhecida como “relógio biológico”, os ritmos de nosso corpo, que foram comprometidos duramente durante a pandemia.  O horário regular, tanto para o adormecer quanto para o despertar, ficou atrapalhado no ambiente familiar, interferindo na capacidade de concentração das crianças e dos adolescentes, repercutindo na aprendizagem, nas alterações de humor, no estresse.

 A sabedoria popular traduziu esse conhecimento de muitas formas. A vovó já dizia que as crianças crescem enquanto dormem. Há muita sabedoria nessa frase, embora a vovó nem imaginasse que a ciência viesse a explicar o porquê que isso acontece – é durante o sono que ocorre a liberação de 2/3 da produção do GH (hormônio do crescimento). Em decorrência disso, uma ou várias noites mal dormidas, ir dormir de madrugada e acordar cedo, ou ainda uma sequência de noites com vários despertares e interrompidas podem acarretar consequências na saúde das crianças e adolescentes, como por exemplo: falta de atenção, alterações de humor, crises de ansiedade, agitação e inquietude, dificuldade de aprendizado e até déficit de crescimento.

A vovó também dizia para “não encher a pança na hora do jantar”, coma menos, prefira alimentos mais leves, menos gordurosos e menos doces. Ela estava certa, de novo!

A sabedoria popular, encarnada por nossas avós, intuía as noções que hoje preconizamos como hábitos saudáveis para que se desfrute de uma noite de repouso:  

1. Criança tem que ter horário certo para dormir. Sinalize através de hábitos e rotina que a hora do sono está chegando: diminua o barulho, desacelere o ritmo das atividades.

2. Nada de brincadeiras ou atividades que agitem e excitem a criança perto da hora de dormir.

3. Conte histórias, leia um livro para elas ou ponha para tocar uma música suave.

4. Diminua a intensidade da iluminação no ambiente (a vovó nem sabia que a melatonina – que é o hormônio relacionado ao sono – é retardado quando há exposição à luz).

 

Insônia

A insônia, que habitualmente afeta, segundo a Academia Americana de Medicina do Sono, de 20-30% das crianças no mundo, pode ser provocada por dois tipos de fatores: (A) retardo do início do adormecer por comportamentos inadequados, (B) falta de estabelecimento de limites. O primeiro tipo (A) ocorre quando a criança aprende a dormir sob uma condição muito específica, por exemplo: andar de carro, ninar no carrinho ou no colo, tomar mamadeira. Já o segundo tipo (B) se caracteriza pela dificuldade dos pais em estabelecer regras para a hora de dormir ou de fazer com que sejam respeitadas. Uma criança que não tem limites durante o dia não os aceitará na hora de dormir. O pequeno “tirano” vence todas!

A dinâmica é simples: a criança chora e os pais não dão o que ela quer, chora mais alto e os pais resistem, mais alto ainda e os pais não aguentam e cedem. Então, ela aprende que, se chorar alto o suficiente, conseguirá o que quer.

As crianças “respiradoras bucais”, que apresentam, em geral, hipertrofia de amigdalas e/ou adenoides, têm com frequência apneia (interrupções da respiração) durante o sono. Cerca de 10% das crianças roncam e, dessas, aproximadamente 3% tem apneia obstrutiva do sono, quando ocorrem breves e repetidas interrupções da respiração, enquanto a criança dorme. Esse fator ocasiona um sono de má qualidade, levando aos desdobramentos que mencionamos antes.

Distúrbios do sono

Outros distúrbios de sono comuns em crianças são o “sonambulismo” e o “terror noturno”, que fazem parte do grupo das parassonias. Nestes casos há forte correlação com fatores genéticos e a ansiedade é um fator desencadeante importante. Em geral, esses casos não necessitam de nenhuma intervenção (apesar de parecerem assustadores para os que presenciam o evento) e resolvem-se naturalmente com o tempo.

Pais: relaxem, não fiquem nervosos e nem obcecados! Tentem trabalhar em uma coisa de cada vez, mantenham a calma e tenham mais paciência, esta fase vai passar!

Relator:
Fernando Manuel Freitas de Oliveira
Coordenador do Blog Pediatra Orienta da Sociedade de Pediatria de São Paulo

 

O QUE OS ESPECIALISTAS DIZEM SOBRE O ASSUNTO?
Gustavo Moreira
Membro do Departamento Científico de Medicina do Sono na Criança e no Adolescente da Sociedade de Pediatria de São Paulo

 

O sono infantil nos tempos atuais

As transformações do estilo de vida da população nas últimas décadas tiveram impacto importante nos padrões de sono de lactentes e crianças. Diversos aspectos contribuem para a redução do tempo de sono, como o tempo excessivo gasto no deslocamento para escola/trabalho – típicos do ambiente urbano – a exposição excessiva à luz artificial e a crescente ocupação feminina no ambiente de trabalho, retirando-a de tarefas antes desempenhadas na criação dos filhos. Assim, o horário que biologicamente é mais adequado para as crianças dormirem, entre 19 e 21 horas, foi gradativamente atrasado nas últimas gerações. Como o horário de acordar pela manhã é fixo e cedo nos dias de semana, a oportunidade de dormir diminui. O aumento do tempo das sonecas diurnas só compensa esta perda parcialmente. A desvalorização do tempo de descanso e a competitividade do mundo moderno contribuem para a minimização do sono das crianças, como é observado em vários países asiáticos.

A pandemia pelo coronavírus trouxe novos fatores que influenciam nos hábitos diurnos e noturnos de adultos e crianças, entre eles: a necessidade de isolamento social, o deslocamento de trabalho para a residência (home-office), as preocupações em relação à insegurança financeira, a saúde pessoal e de familiares. Os horários de início e fim do sono foram atrasados em 1 a 2 horas, pois não havia mais a necessidade de deslocamento para a escola. Algumas crianças reduziram o tempo de sono, pois permaneceram em atividades de lazer em telas (videogames, navegando pela Internet, filmes e séries na TV). A luz emitida por estes dispositivos reduz a secreção da melatonina, o hormônio que é liberado à noite para regular o sono. Outras crianças aumentaram o tempo de sono, principalmente naquelas famílias que conseguiram organizar o tempo de estudo, lazer e descanso nestes tempos difíceis. Um estudo de monitorização contínua por vídeo nos Estados Unidos mostrou que lactentes aumentaram o tempo de sono no ano de 2020 quando comparado ao ano de 2019.

 Problemas de saúde mental foram identificados em adultos no período de isolamento social, como estresse pós-traumático, ansiedade e depressão. Isso foi especialmente observado em profissionais de saúde, pessoas com doenças crônicas, pacientes com covid-19 e pessoas em quarentena. Por outro lado, exercício físico, maiores níveis de renda, habilidades de enfrentamento, participação social e relacionamento interpessoal foram identificados como fatores de proteção.

É importante destacar que as crianças também foram bastante afetadas nesse período, com grandes mudanças negativas no estilo de vida. Elas foram submetidas a menos atividade física, maior tempo de tela e mudanças em padrões alimentares e de sono, sendo que a população economicamente mais vulnerável foi a que apresentou maiores dificuldades. Com a realidade do isolamento social, as crianças precisaram se adaptar às aulas on-line e muitas tiveram dificuldades; além disso, houve aumento de consumo de comidas processadas, sintomas significativos de ansiedade, problemas de humor e autorregulação e piora na qualidade e quantidade de sono, tanto de crianças, quanto de suas mães.

Foto: new africa | depositphotos.com