Sociedade de Pediatria de São Paulo
Texto divulgado em 08/03/2022
A anorexia é o termo utilizado para as situações em que há diminuição ou perda do apetite. Queixas relacionadas ao padrão alimentar das crianças são muito frequentes e costumam ser motivo de preocupação familiar e de visitas aos consultórios pediátricos. Embora, na maior parte das vezes, essas queixas estejam relacionadas à discordância entre as expectativas familiares e o padrão alimentar da criança, é preciso saber identificar quando elas podem significar sofrimentos psíquicos, físicos ou até transtornos alimentares mais graves.
Alimentação = nutrição física = nutrição psíquica: desde as primeiras mamadas, alimentar-se é muito mais do que um ato instintivo de sobrevivência. Preparar, servir e saborear o alimento são atos sociais que remetem às nossas experiências afetivas, às nossas histórias de vida. A alimentação adequada é essencial para a manutenção da vida. Assim, ter um filho ou filha que se alimenta de acordo com o que acreditamos ser o ideal qualifica o nosso cuidado, sendo, portanto, legítima a preocupação dos pais em relação ao padrão alimentar de seus filhos.
Essa apreensão costuma ser mais frequente em alguns períodos do crescimento e desenvolvimento, nos quais naturalmente ocorrem mudanças no padrão de alimentação da criança, o que muitas vezes é interpretado pelos familiares como anorexia.
Períodos de mudanças fisiológicas, próprias do crescimento e do desenvolvimento da criança
No início do desmame: a introdução de novos alimentos na dieta da criança é um período que pode ser desafiador, mas também representa uma oportunidade para grandes aprendizados. No começo, por ter uma desconfiança natural para experimentar novos sabores, o bebê pode recusar alguns alimentos, sendo importante que eles sejam oferecidos outras vezes antes de definir se a criança realmente não gosta. O período de desmame, ainda que inconscientemente, pode ser um período de luto para a mãe, o que também favorece o maior número de queixas nessa fase.
Durante o 2° semestre de vida: nesse período, é comum a criança não ganhar peso na mesma intensidade que vinha ocorrendo antes, diminuindo um pouco a quantidade de alimento que aceita. Para algumas famílias, essa desaceleração natural do crescimento é interpretada como consequência de uma menor ingestão alimentar, quando o que ocorre é o oposto: o bebê come menos porque está precisando menos. É também nessa fase que a criança vai gradativamente se descobrindo como um ser independente, o que pode gerar alguma angústia e períodos reversíveis (em geral sem repercussão no crescimento) de regressão no padrão alimentar e de sono.
Entre um e dois anos de idade: essa é uma fase de grandes descobertas e experimentações. Muitas vezes a queixa da anorexia, na verdade, refere-se aocomportamento de uma criança que já não fica parada para se alimentar e que quer pegar tudo com as próprias mãos. A criança experimenta o mundo com todos os sentidos. Deixar se sujar é a regra nesse período.
Entre dois e cinco anos: a desaceleração do crescimento é maior, ocorrendo, portanto, uma diminuição natural do apetite. É também um período de maior socialização e independência com influência progressiva das propagandas e um desejo aumentado de impor sua vontade.
A partir dessa idade até a adolescência o crescimento ocorre de forma mais lenta e há uma influência cada vez maior do grupo social e da rotina de vida da criança.
De forma geral, a criança costuma comer o suficiente para crescer e se desenvolver apropriadamente. Nascemos com um mecanismo regulador da fome que faz com que a gente coma aquilo que precisa para crescer e se desenvolver. Forçar a criança para que coma a quantidade que achamos ideal, não respeitando sua saciedade, faz com que ela perca gradualmente esse mecanismo de autorregulação. Dessa maneira, mais importante do que a quantidade de alimento que a criança aceita é o seu padrão de crescimento, a sua vivacidade e a presença de sintomas associados.
É muito importante o acompanhamento do pediatra em todas as idades para observar se a criança está mantendo seu padrão de crescimento.
Quando a queda de apetite ou mudança no padrão alimentar pode necessitar de maior investigação e atenção
– Quadros prolongados, com repercussão na curva de crescimento.
– Presença de outros sintomas como: queda de cabelo, pele seca, constipação, falta de ânimo, ansiedade, engasgos ou vômitos recorrentes.
– Quadros súbitos: a recusa alimentar é comum nos processos infecciosos, sendo totalmente reversível após esses períodos. Quando ela surge isoladamente, é importante a investigação de fatores estressores na vida da criança, como doenças na família, mudanças nas relações familiares, vida escolar e outros. A avaliação do pediatra para investigar a presença de alterações no exame físico que possam sugerir alguma doença é também importante nesses casos.
– Quadros de muita seletividade alimentar: algumas crianças, desde muito cedo, apresentam aversão importante a algumas texturas e consistências. São crianças mais exigentes para se alimentar (“picky eaters”, em inglês). Essas situações demandam muita paciência dos pais e abordagem logo que os sintomas surgem para que não piorem mais.
Em todos os casos, é sempre importante observar o comportamento da criança nos outros cenários em que vive (casa dos avós, escola, casa de amigos) e também em relação aos seus outros hábitos (sono, brincadeiras, rotina).
Conversar com a criança, para saber o motivo da recusa alimentar e o que está acontecendo na vida dela, é essencial. Além disso, conversar quando há momentos de crises familiares. As crianças, mais que os adultos, percebem os sinais da linguagem corporal das pessoas que gosta. Aquilo que não dizemos, muitas vezes com a intenção de não fazê-las sofrer, pode causar mais danos, porque percebem que algo não vai bem e não conseguem definir o que é.
Muitas vezes as pessoas dizem que a criança está com esse comportamento para chamar a atenção. Ficam as perguntas: por que chamar a atenção não comendo? Será que ela está recebendo a atenção que necessita em outros momentos? Não existe um “atenciômetro” que defina a quantidade exata de atenção que uma pessoa precisa. Cada pessoa tem o seu modo próprio de se relacionar no mundo e algumas precisam de mais atenção ou não conseguem pedir quando necessitam. Além disso, as crianças não nascem sabendo definir as emoções que sentem. A conversa com os adultos que ama ajuda a construir sua “cartografia emocional” e, aos poucos, ela vai aprendendo a definir e acolher o que sente, o que muitas vezes ajuda a diminuir sintomas como a falta de apetite.
Finalizando, prevenir e criar bons hábitos alimentares é importante para toda criança. Talvez seja uma das melhores heranças que os pais podem deixar para os seus filhos e filhas.
Relatora
Rosa Resegue
Departamento Científico de Saúde Mental da Sociedade de Pediatria de São Paulo
Foto: bedolaga | depositphotos.com