Sociedade de Pediatria de São Paulo
Texto divulgado em 25/03/2022
É no mundo do “faz de conta” que a criança “dá conta” do mundo real que a acolhe.
Avós e avôs utilizam com frequência a famigerada expressão: ¨no meu tempo” para iniciar a descrição de fatos, narrativas e, em especial, para se contrapor aos usos e costumes do momento.
Então, naqueles tempos idos se dizia que meninas brincavam com bonecas e meninos com bolas, meninas vestiam rosa, meninos vestiam azul, meninas faziam ballet e meninos judô. Nos dias de hoje, todos podem brincar com bonecas, jogar futebol ou praticar qualquer esporte. Ninguém se espantou quando, no intervalo de uma competição nas Olimpíadas de Tóquio, o atleta britânico de saltos ornamentais, Tom Daley, tricotava esperando sua vez para entrar na competição. A nossa “Fadinha”, a maranhense Rayssa Leal, invadiu o território dos moleques e deu um show no skate, tonando-se a brasileira mais jovem a receber uma medalha olímpica (de prata), com seus 13 anos, seis meses e 22 dias de idade.
“Os tempos são outros”, diria a vovó. No entanto, ela sabe que algumas coisas continuam semelhantes e igualmente necessárias, porque desempenham um papel importante para as crianças – é o caso do brincar. Fiquemos com as bonecas para elucidar este tema.
A origem das bonecas remonta à civilização Babilônica, atravessa os séculos desde o Egito, Roma, Grécia Antiga, Japão e China. A boneca de pano é a forma mais simples de confecção. Outros materiais foram utilizados: madeira, marfim, como a boneca Crepereia Tryphaena (séc II d.C), cobre, ferro, porcelana, até chegarmos nas bonecas modernas feitas de vinil ou PVC. De todas as cores, tamanhos, estilos, com os incontáveis adereços e acessórios, algumas parecendo ser de “carne e osso”.
O velho carpinteiro italiano Geppetto fez um boneco de madeira chamado Pinóquio, o qual é trazido à vida pela Fada Azul.
A boneca Emília nasceu, em 1920 (102 anos), boneca de pano, feita por Tia Nastácia para a menina Narizinho e que ganhou vida na história criada por Monteiro Lobato para a série Sítio do Picapau Amarelo. Nasceu muda e foi curada pelo Dr. Caramujo, que lhe receitou uma “pílula falante” que fez a boneca desembestar a falar. No conto ‘A reforma da Natureza’, Emília inventa o “livro comestível”: “(…) Em vez de impressos em papel de madeira, que só é comestível para o caruncho, eu farei os livros impressos em um papel fabricado de trigo e muito bem temperado. (…) O leitor vai lendo o livro e comendo as folhas, lê uma, rasga-a e come. Quando chega ao fim da leitura, está almoçado ou jantado.” Através da falante boneca Emília, Lobato expressa a ideia de leitura prazerosa que alimenta, incorpora-se ao nosso ser, a nossa personalidade e vai nos moldando.
A boneca é a representação simbólica do ser humano e permite assumir muitos papéis: o de mãe, irmã, avó, tia, professora… Segundo Piaget (1997): “se a criança recria o que vive, ela recria também o afeto que recebe e assume o papel dos cuidadores” – ou seja, ao brincar de boneca a criança exercita o afeto e todo esse processo a ajuda a estreitar relações de cuidado e respeito.
Brincar de boneca desenvolve empatia e habilidades de interação social que repercutirão em diversos comportamentos futuros. É nesse momento da vida que muitas habilidades cognitivas e sociais são formadas.
Muito além de ser um simples brinquedo, as brincadeiras com bonecos e bonecas ajudam a criança a ajustar aspectos emocionais e compreender conflitos do cotidiano.
Relator:
Fernando MF Oliveira
Coordenador do Blog Pediatra Orienta da Sociedade de Pediatria de São Paulo
Foto: panther media seller | depositphotos.com