SPSP – Sociedade de Pediatria de São Paulo
Texto divulgado em 30/01/2020
Relatora:
Patricia Salmona
Departamento Científico de Genética da SPSP
Chegada a era pós-genômica, a genética nos mostrou que a programação gênica não é mais a última palavra traçando nossos destinos em relação às nossas “tendências” a desenvolver determinadas doenças. Não podemos recusar um DNA, mas podemos decidir se vamos facilitar, ou não, sua expressão através da epigenética. Esse conceito muda o pensamento de que nossa susceptibilidade a desenvolver determinadas patologias estava traçada e engessada por nossos genes.
E o que é epigenética?
Epigenética é a área da biologia que estuda mudanças no funcionamento de um gene que não são causadas por alterações na sequência de DNA e que se perpetuam nas divisões celulares, meióticas ou mitóticas.1 O termo epigenética significa “em adição à informação genética codificada no DNA”2 e é genericamente utilizado para definir mudanças que ocorrem na expressão gênica sem, no entanto, ocorrer nenhuma alteração na sequência do código genético.3
A real mudança de paradigma evolucionista ocorreu bem no final do século 20, com a chamada Síntese Moderna. Ela ditava, de maneira hegemônica, as teorias evolucionárias em que a hereditariedade se manifestava exclusivamente por meio da transmissão de genes através de células de linhagem germinativa.4
No entanto, muitas perguntas ainda ficavam sem uma resposta 100% convincente, como por exemplo:
Como gêmeos univitelinos ou idênticos, criados juntos no mesmo ambiente, podem exibir diferente susceptibilidade a doenças se a única variável fosse o código genético (genoma)?
Muitos estudos evidenciam marcas no genoma decorrentes de sentimentos, estresse e traumas (epigenética das emoções, por exemplo), abrindo caminho para estudarmos de que forma poderíamos contribuir para mudanças epigenéticas positivas, visando um modelo de saúde integralista.
A pediatria, especialmente nos cuidados dos primeiros 1000 dias de vida, aparece como parte desse modelo para demonstrar como a epigenética, nutrigenômica, amamentação, saúde emocional, estudo da microbiota, entre outros, podem afetar nosso desenvolvimento global, deixando marcas que inclusive poderão ser transmitidas aos nossos descendentes.
Mudanças de hábitos, principalmente nutricionais, e uma boa puericultura impactam positivamente na história natural das doenças. Essas escolhas influenciarão não só os genes de nossos filhos, bem como de nossos netos e bisnetos, uma vez que as alterações epigenéticas podem produzir efeitos sobre a expressão gênica por um longo período de tempo, passando de uma geração a outra.5
Alguns mecanismos epigenéticos incluem a metilação do DNA, o imprinting, mudanças nas histonas e o silenciamento mediado por RNA. Essas modificações químicas complexas no DNA são constantemente feitas e desfeitas durante toda a vida, assim, alterações epigenéticas podem ser desencadeadas no genoma de um indivíduo em qualquer momento de sua vida, facilitando ou não o desenvolvimento de determinadas patologias.6,7,11
A exposição a fatores ambientais, como radiação e outros agentes químicos, físicos e psicogênicos durante os períodos pré e pós-natais podem resultar numa programação epigenética alterada e, por consequência, em um elevado risco de desenvolvimento de doenças.5
Levantamento de dados históricos e estudos de coorte mostraram que situações como no inverno de 1944-1945, ao final da Segunda Guerra Mundial, período conhecido como “Fome Holandesa”, a severidade do inverno provocou a morte de cerca de 20.000 pessoas. O acompanhamento de um grupo de sobreviventes nascidos naquele período revelou uma incidência maior de doença cardiovascular, diabetes, obesidade e, sobretudo, de esquizofrenia na vida adulta.8
Entre 1959 e 1961, a “Fome Chinesa”, causada por mudanças climáticas adversas e políticas econômicas equivocadas, provocou a morte de 20 a 40 milhões de pessoas. Nesse exemplo, também, o desenvolvimento de esquizofrenia entre os adultos nascidos naquela época variou entre duas e três vezes o esperado. Futuramente foi verificado que filhos e netos dessas gerações que passaram por “grandes privações” tiveram sobrevida inferior em até três décadas quando comparados aos descendentes daqueles que, quando jovens, foram submetidos apenas à privação de alimento.8
A contribuição de um estudo revolucionário
Em 2003, foi publicado um dos experimentos que mudaria para sempre o rumo das pesquisas em epigenética (16 anos atrás apenas), um estudo de Randy Jirtle e Robert Waterland. Os pesquisadores elegeram como modelo experimental camundongos regulados pelo gene Agouti, que não apenas os confere uma pelagem amarela, como também os torna mais propensos ao desenvolvimento de obesidade, diabetes e câncer. O experimento consistia em alimentar dois grupos de fêmeas idênticas e grávidas com rações distintas: uma normal e outra suplementada por ácido fólico e vitamina B12 (doadores de carbono = grupo metil = metilação).9
No fim do estudo, verificaram que os grupos metil se ligavam a marcadores epigenéticos sobre o gene Agouti, no útero, silenciando sua expressão (ou, como preferem alguns, “desligando este gene”). Essa metilação = imprint genômico = onde, ao invés dos 2 alelos (expressão bialélica dos genes com a metilação) passa a ter expressão monoalélica.9
Dessa maneira, sem causar alteração alguma na estrutura do DNA, por meio apenas da suplementação de vitaminas do complexo B, Jirtle e seus colaboradores conseguiram que fêmeas Agouti produzissem gerações de filhotes de pelagem castanha, sem propensão à obesidade, diabetes ou câncer. Pela primeira vez, defrontávamo-nos com algo, até então, impensável: um modelo experimental no qual doenças crônicas podiam ser prevenidas por várias gerações por meio de uma modulação epigenética mediada pela nutrição.9
Outros estudos demonstram que o padrão de expressão dos genes também pode ser influenciado pela condição socioeconômica na infância e pelo estresse vivenciado pela mãe durante a gestação, embasando mais ainda o conceito de que esses primeiros 1000 dias de vida são uma inegável janela de oportunidade que deve ser amplamente divulgada e cuidada. Quando falamos de epigenética nos primeiros 1000 dias de vida como principal alicerce, vemos a alimentação, especialmente na fase mais intensa de crescimento e desenvolvimento do binômio mãe/bebê, podendo gerar impactos a longo prazo, como, por exemplo, uma maior propensão ao desenvolvimento de doenças cardiovasculares, diabetes, dislipidemias e hipertensão arterial.8,10
O papel do pediatra nos primeiros Mil dias
Muitos hábitos do cotidiano dos pacientes, principalmente vinculados à nutrição, sono, cuidados emocionais ocorrem sem a percepção de suas consequências no futuro e cabe a nós pediatras explicarmos e frisarmos o quão uma boa puericultura é fundamental.8
Já existem estudos robustos comprovando alterações epigenéticas significativas envolvendo medidas de coeficiente de inteligência e leite materno.13,14
Finalmente, o desenvolvimento de estratégias de modulação epigenética dos genes, na tentativa de modular sua expressão começa a ocupar papel de destaque nas pesquisas atuais.
Referências
1-Morris JR, Wu C-t. Genes, genetics, and epigenetics: a correspondence. Science. 2001;293:1103-5.
2-Feinberg AP, Tycko B. The history of cancer epigenetics. Nat Rev Cancer. 2004;4:143-53.
3- Ciências Biológicas e da Saúde, Londrina. 2013;34:125-36.
4- Feinberg AP, Tycko B. The history of cancer epigenetics. Nat Rev Cancer. 2004;4:143-53.
5- Gibbs WW. Além do DNA. Scientific American Brasil.2007;44-51.
6- Jirtle RL, Skinner MK. Environmental epigenomics and disease susceptibility. Nature Reviews Genetics. 2007; 8:253-62.
7- Jablonka E, Raz G. Transgenerational epigenetic inheritance: prevalence, mechanisms, and implications for the study of heredity and evolution. Q Rev Biol. 2009;84:131-76.
8- Bygren LO, Kaati G, Edvinsson S. Longevity determined by paternal ancestorsí nutrition during their slow growth period. Acta Biotheor. 2001;49:53-9.
9- Waterland RA, Jirtle RL. Transposable elements: targets for early nutritional effects on epigenetic gene regulation. Mol Cell Biol. 2003;23:5293-300.
10- Badcock C, Crespi B. Battle of the sexes may set the brain. Nature. 2008;454:1054-5.
11- Ideraabdullah FY, Vigneau S, Bartolomei MS. Genomic imprinting mechanisms in mammals. Mutat Res. 2008;647:77-85.
12- Sulewska A, Niklinska W, Kozlowski M, Minarowski L, Naumnik W, Niklinski J, et al. DNA methylation in states of cell physiology and pathology. Folia Histochemica et Cytobiologica, Warszawa. 2007;45:149-58.
13- Hartwig FP, Mola CL, Davies NM, Victora CG, Relton CL. Correction: Breastfeeding effects on DNA methylation in the offspring: a systematic literature review. Plos One. 2017;12:e0175604.
14- Hartwig FP, Davies NM, Horta BL, Ahluwalia TS, Bisgaard H, Bønnelykke K, et al. Effect modification of FADS2 polymorphisms on the association between breastfeeding and intelligence: results from a collaborative meta-analysis. Int J Epidemiol. 2019;48:45-57.