Saiu na mídia: “A primeira-ministra mais jovem da Europa enfrentou (08/2022) uma crise de imagem após o vazamento de um vídeo em que ela é vista dançando e cantando animada em uma festa em sua residência. A gravação foi publicada em uma rede social. À beira das lágrimas, com a voz trêmula, durante um ato organizado por seu partido, disse: “Sou um ser humano. Às vezes também busco alegria, luz e prazer em meio a essas nuvens escuras”. Acrescentou: “Isso é algo privado, é alegria e vida”, declarou ela, com os olhos marejados. “Mas eu não faltei um único dia de trabalho”. Para “dissipar qualquer suspeita” de uso de drogas, fez um exame toxicológico, que deu negativo. “Quero acreditar que as pessoas observam o que fazemos enquanto trabalhamos e não o que fazemos em nosso tempo livre”, declarou admitindo que a semana foi “muito difícil”.
O ex-primeiro-ministro inglês – aquele do penteado “desconstruído” – também foi punido publicamente pela festa particular que realizou em sua residência durante o período restritivo na pandemia, desrespeitando a própria recomendação que impunha à população naquele momento pandêmico – não ajuntar.
Nestas notícias, fartamente veiculadas na imprensa, estampam-se o conflito entre a vida pública e a vida particular, o direito à privacidade de todo e qualquer cidadão, o perigo da exposição nas mídias sociais da intimidade, a notícia como fonte de venda para a promoção pessoal ou institucional de terceiros, o julgamento moral.
Do outro lado desse ringue está uma pessoa que foi à “lona”. Acusou o golpe, com dor e sofrimento. A política mulher naquele momento foi julgada não como política, mas como pessoa; não por suas atitudes no cargo, mas pelas suas atitudes como indivíduo. Esse é o dilema da pessoa pública, em que a vida pessoal não se distancia da vida pública, o cargo é uma verdadeira tatuagem que não sai da sua pele. Cargos públicos, ou não, têm uma conotação simbólica associada aos mesmos.
A vovó, muito curiosa, diz para os seus netinhos, comentando a notícia da ministra, em particular:
– “Ah! meus queridos … é a liturgia do cargo”.
– “Que coisa é essa vovó, liturgia*?”
– “É o cerimonial, é o ritual, é o que a pessoa deve aparentar no exercício de um cargo ou de uma função. É uma linguagem religiosa, meus netinhos.
– Que papo mais careta, vó! A mulher tem o direito de fazer o que ela quer em sua casa.
– Tem coisas que são complicadas. Aí, “não basta ser, tem que parecer”.
– “Vó, dá pra mudar de assunto?”.
Em 18 de setembro é comemorado o “Dia dos Símbolos Nacionais”.
Um símbolo, grosso modo, é algo que evoca a presença de outra pessoa ou de algo – é como se fosse um substituto daquela pessoa ou daquele algo. Assim, os símbolos nacionais, como a bandeira ou o hino nacional, remetem-nos àquilo que chamamos de pátria, e com quem nos identificamos com senso de pertencimento.
O fato é que os símbolos nacionais estão em baixa. No tempo da vovó se hasteava a bandeira nacional nos pátios das escolas toda semana. Nas aulas de canto se aprendiam os hinos pátrios: Nacional, da Bandeira, Nove de Julho, da Proclamação da República, do Estado de São Paulo. Tempo em que os alunos se levantavam das carteiras e ficavam em pé quando o professor entrava na sala de aula. Tempo de respeito a determinados valores, determinados cargos, de respeito à hierarquia.
Hoje somos mais liberais. Parece que não se dá muita bola para tudo isso. Quando se toca o hino nacional nos estádios de futebol, ninguém ouve, pois os cânticos dos hinos das torcidas ecoam, simultaneamente, mais altos. Nem o minuto de silêncio em homenagem póstuma é respeitado – não dura um minuto, muito menos gera silêncio.
Qual a importância prática desses símbolos e dessas “liturgias” para uma nação, neste século XXI? O assunto é mais complexo do que parece. Na resposta se questiona autoridade, o conceito de desenvolvimento dos povos, a distribuição geopolítica da humanidade, o sistema de distribuição de riquezas e muito mais. O enfraquecimento desses símbolos é um dos mecanismos disruptivos, de crítica social, que caracteriza o início deste século. Ao ouvir um hino pátrio, pelo contemplar de uma bandeira, arregimentam-se pessoas e movem-se sentimentos. Em época de “copa do mundo de futebol” esse fenômeno explode. Há poder nesses símbolos. Ao mesmo tempo que nos unem, também nos separam de outros ao nos tornar únicos – somos os habitantes daquele solo e, no nosso caso, habitantes do Brasil.
O não cumprimento da liturgia do cargo pode ofender. Não esperamos que nossos líderes sejam destemperados, falem errado nosso idioma, não saibam se comportar à mesa (gastronômica ou de conversação). A liturgia do cargo significa cumprir a representação que é delegada de capacidade, honestidade, seriedade, responsabilidade.
(*) O vocábulo “Liturgia“, em grego, formado pelas raízes leit- (de “laós”, povo) e -urgía (trabalho, ofício) significa serviço ou trabalho público. Por extensão de sentido, passou a significar também, no mundo grego, o ofício religioso, na medida em que a religião no mundo antigo tinha um caráter eminentemente público. (Wikipédia)
Relator:
Fernando MF Oliveira
Coordenador do Blog Pediatra Orienta da SPSP
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