A Medicina nunca esteve tão preparada para eliminar sofrimentos e salvar vidas. Os avanços da ciência e da tecnologia têm levado as pessoas a viverem melhor e, cada vez mais. A cada quatro/ cinco anos se duplica o conhecimento médico existente.
Contudo, apesar dos inúmeros avanços tecnológicos, a relação entre o paciente e seu médico continua com papel de destaque no tratamento das patologias. Sem sombra de dúvida, podemos afirmar que o sucesso de um tratamento depende, em grande parte, da inter-relação que se estabelece entre os dois pólos.
A confiança, a reciprocidade, a compaixão, a autoridade – sem que haja submissão -, o saber ouvir e a atenção são fatores fundamentais no estabelecimento de uma adequada relação médico-paciente e, por conseguinte, indispensáveis para o adequado restabelecimento da saúde do enfermo.
Por outro lado, o profissional médico deve ter consciência de que sua atividade, ou seja, que a terapêutica por ele desenvolvida, pode não trazer o efeito desejado. O paciente, por sua vez, também deve ser informado sobre todos os dados de sua doença, quais os tratamentos que serão utilizados, suas complicações e seus riscos e, desde o início, ter a total noção de que a Medicina, por não ser uma ciência exata, pode não trazer a evolução esperada.
Entretanto, existe, hoje, uma enorme expectativa de que a Medicina possa resolver tudo. Entretanto, mesmo que as conquistas científicas sejam velozes e promissoras, ainda faltam respostas para muitas situações.
Já a ausência de políticas públicas eficazes, a deterioração dos serviços de saúde e das relações de trabalho, as deficiências do ensino médico, dentre outros fatores, geram problemas que poderiam ser evitados. Cabe a nós profissionais da área de saúde, desde a faculdade, lutarmos pela melhoria das condições de ensino em nossas faculdades, pelo adequado atendimento à saúde, melhoria da educação e dos níveis sócio-econômicos de nossa população, para que o maior número de pessoas atinja o bem-estar bio-psico-social, verdadeira definição de saúde. À sociedade cabe exercer cada vez mais a cidadania, exigindo o que a Constituição Federal lhe assegura, dentre outros inúmeros direitos, o direito à saúde, à educação e a segurança, fatores obrigatórios para o desenvolvimento do bem-estar das pessoas.
Por fim, os médicos não podem deixar que haja qualquer interferência na relação médico-paciente. O aumento de ações contra médicos nas esferas administrativa, penal e cível tem relação direta com a perda da correta relação médico-paciente. O resgate do adequado relacionamento, além de aumentar sobremaneira o prognóstico das patologias tratadas, sem dúvida, trará, novamente, o respeito médico de que necessita todo o profissional de saúde, que muitas vezes se vê trabalhando em condições extremas e de superação.
Aspectos psico-sociais da relação médico-paciente
Yeatch e cols. propuseram, em 1972, quatro modelos de relação médico-paciente:
- Modelo Sacerdotal
- Modelo Engenheiro
- Modelo Colegial
- Modelo Contratualista
Modelo Sacerdotal
Baseado na tradição hipocrática, o médico assume uma postura paternalista com relação ao paciente, passando a comandar, verdadeiramente, em todos os seus passos, o tratamento, não levando em consideração a opinião do paciente.
MÉDICO > paciente
Modelo Engenheiro
Este, ao contrário do Sacerdotal, transfere todo o poder de decisão para o paciente.
Médico < PACIENTE
Modelo Colegial
O Modelo Colegial demonstra um poder compartilhado, de forma igualitária, entre o médico e seu paciente.
Médico <=> Paciente
Modelo Contratualista
Neste Modelo o médico preserva a sua autoridade e tem a responsabilidade das decisões técnicas. Já ao paciente compete uma participação ativa neste processo de decisões.
MÉDICO <=> PACIENTE
Em 1992, Emanuel e cols. apresentaram uma alteração nos modelos de relação médica apresentados por Yeatch.
Denominaram o Modelo Sacerdotal dePaternalístico e, o Modelo Engenheiro deInformativo e subdividiram o Modelo Contratualista em Interpretativo e Deliberativo.
Estes autores concluem pela possibilidade de um quinto modelo, Instrumental. Neste o médico se “utilizaria” do paciente como uma forma de atingir uma outra finalidade. Como exemplo, citam a utilização abusiva de pacientes em projetos de pesquisa, tal como o realizado em Tuskegee.
Relação médico-paciente: uma questão de direito
Antes de adentrarmos à análise dos aspectos jurídicos envolvidos na Relação Médico-Paciente, torna-se fundamental a descrição dos direitos do paciente e do profissional de saúde, a fim de que se determine parâmetros que não poderão ser ultrapassados, por nenhuma das partes, para que não se caracterize a violação de um direito próprio. Assim:
A) Direitos do Paciente
- Abandono – Após iniciado o tratamento, o médico não pode abandonar o paciente, a não ser que tenham ocorrido fatos que comprometam a relação médico-paciente e o desempenho profissional. Deve estar assegurada a continuidade na assistência prestada. Entretanto, no caso de atendimento ambulatorial, sem caráter de urgência, o médico pode se recusar a atender determinado paciente, não se configurando omissão de socorro.
- Acompanhante – O paciente tem o direito de ser acompanhado por pessoa por ele indicada, em todos os atos médicos por ele sofridos.
- Alta – O médico pode, ou melhor, deve se negar a conceder alta a paciente sob seus cuidados, quando considerar que isso possa acarretar risco à integridade do mesmo. Quando não incorrer em risco para o paciente, se este ou seus familiares decidirem pela alta, sem parecer favorável do médico, devem responsabilizar-se por escrito.
- Anestesia – O paciente tem o direito de receber anestesia em todas as situações indicadas, bem como, pode recusar tratamentos dolorosos ou extraordinários para tentar prolongar a vida.
- Atendimento digno – O paciente tem direito a um atendimento digno, atencioso e respeitoso, sendo identificado e tratado pelo nome ou sobrenome.
- Autonomia – Consentir ou recusar, de forma livre, voluntária e esclarecida, com adequada informação, procedimentos diagnósticos ou terapêuticos a serem nele realizados, desde que em posse da capacidade e discernimento de escolha.
- Criança – A criança, ao ser internada, terá em seu prontuário a relação das pessoas que poderão acompanhá-la integralmente durante o período de internação.
- Exames – É vedada a realização de exames compulsórios, sem autorização do paciente, como condição necessária para internação hospitalar, exames pré-admissionais ou periódicos e ainda em estabelecimentos prisionais e de ensino.
- Gravação – O paciente tem o direito de gravar a consulta, caso tenha dificuldade em assimilar as informações necessárias para seguir determinado tratamento.
- Identificação – O paciente deve poder identificar as pessoas responsáveis direta e indiretamente por sua assistência, por meio de crachás visíveis, legíveis e que contenham o nome completo, a função e o cargo do profissional, assim como o nome da instituição.
- Informação – O paciente deve receber informações claras, objetivas e compreensíveis sobre todos os atos médicos e de todos os riscos inerentes ao tratamento e possíveis procedimentos invasivos.
- Medicação – Ter anotado no prontuário todas as medicações, com dosagens utilizadas.
- Morte – O paciente tem o direito de optar pelo local de morte (conforme Lei Estadual válida para os hospitais do Estado de São Paulo).
- Pesquisa – Ser prévia e expressamente informado, quando o tratamento proposto for experimental ou fizer parte de pesquisa, que deve seguir rigorosamente as normas regulamentadoras de experimentos com seres humanos no país e ser aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) do hospital ou instituição.
- Prontuário – Ter acesso, a qualquer momento, ao seu prontuário médico, recebendo por escrito o diagnóstico e o tratamento indicado, com a identificação do nome do profissional e o número de registro no órgão de regulamentação e controle da profissão.
- Receituário – Receber as receitas com o nome genérico dos medicamentos prescritos, datilografadas ou em letra legível, sem a utilização de códigos ou abreviaturas, com o nome, assinatura do profissional e número de registro no órgão de controle e regulamentação da profissão.
- Recusa – O paciente pode desejar não ser informado do seu estado de saúde, devendo indicar quem deva receber as informações em seu lugar.
- Respeito – Ter assegurado a satisfação de necessidades, a integridade física, a privacidade, a individualidade, o respeito aos valores éticos e culturais, a confidencialidade de toda e qualquer informação pessoal, e a segurança do procedimento; ter um local digno e adequado para o atendimento; receber ou recusar assistência moral, psicológica, social ou religiosa.
- Sangue – Conhecer a procedência do sangue e dos hemoderivados e poder verificar, antes de recebê-los, os carimbos que atestaram origem, sorologias efetuadas e prazo de validade.
- Segunda Opinião – Direito de procurar uma segunda opinião ou parecer de um outro médico sobre o seu estado de saúde.
- Sigilo – Ter resguardado o segredo sobre dados pessoais, por meio da manutenção do sigilo profissional, desde que não acarrete riscos a terceiros ou à saúde pública.
Fontes:
Lei Estadual (São Paulo) Nº 10.241, de 17/03/1999.
Pareceres dos Conselhos de Medicina
Resolução Nº 196/96 do Conselho Nacional de Saúde
B) Direitos do Médico
- Exercer a Medicina sem ser discriminado por questões de religião, raça, sexo, nacionalidade, cor, opção sexual, idade, condição social, opinião política ou de qualquer outra natureza.
- Indicar o procedimento adequado ao paciente, observadas as práticas reconhecidamente aceitas e respeitando as normas legais vigentes no país.
- Apontar falhas nos regulamentos e normas das instituições em que trabalhe, quando as julgar indignas do exercício da profissão ou prejudiciais ao paciente, devendo dirigir-se, nesses casos, aos órgãos competentes e, obrigatoriamente, à Comissão de Ética e ao Conselho Regional de Medicina de sua jurisdição.
- Recusar-se a exercer sua profissão em instituição pública ou privada onde as condições de trabalho não sejam dignas ou possam prejudicar o paciente.
- Suspender suas atividades, individual ou coletivamente, quando a instituição pública ou privada para a qual trabalhe não oferecer condições mínimas para o exercício profissional ou não o remunerar condignamente, ressalvadas as situações de urgência e emergência, devendo comunicar imediatamente sua decisão ao Conselho Regional de Medicina.
- Internar e assistir seus pacientes em hospitais privados com ou sem caráter filantrópico, ainda que não faça parte do seu corpo clínico, respeitadas as normas técnicas da instituição.
- Requerer desagravo público ao Conselho Regional de Medicina quando atingido no exercício de sua profissão.
- Dedicar ao paciente, quando trabalhar com relação de emprego, o tempo que sua experiência e capacidade profissional recomendarem para o desempenho de sua atividade, evitando que o acúmulo de encargos ou de consultas prejudique o paciente.
- Recusar a realização de atos médicos que, embora permitidos por lei, sejam contrários aos ditames de sua consciência.
Fonte: Código de Ética Médica – Capítulo II – Direitos do Médico – Artigos 20 a 28
Natureza jurídica da relação médico-paciente
A natureza jurídica da relação médico-paciente é objeto de análise da muitos doutrinadores que discorrem sobre o instituto jurídico da responsabilidade civil.
Juridicamente, a responsabilidade médica seria sempre contratual, com exceção de alguns casos, que veremos a seguir, em que ela passaria a ser extracontratual.
O paciente (ou alguém em nome dele) escolhe um determinado profissional que, por sua vez, ao iniciar o seu tratamento, aceita aquele, estabelecendo-se um negócio jurídico. Ressaltamos que o contrato de prestação de serviços médicos não exige formalidade, podendo ser verbal ou até tácito e, para que passe a existir, basta o acordo de vontades entre pessoas capazes, vez que o objeto da ação é lícito.
O Código Civil estabelece que para a validade do ato jurídico, são necessários: a) agente (s) capaz (es); b) objeto lícito; c) forma prescrita ou não vedada por texto legal.
Ainda, para a existência de um negócio jurídico se faz mister, além dos itens acima citados, a vontade livremente manifestada.
Na relação médico-paciente, encontram-se presentes todos os itens supracitados. Logo, presentes estes elementos, será contratual a relação médico-paciente.
Entretanto, conforme já discutido, existem exceções, que estão relacionadas à não obediência dos itens dispostos no Código Civil. Por exemplo, quando o paciente vem a ser atendido sem que tenha externado sua vontade, como o que chega inconsciente ao hospital, ou ainda, no caso do atendimento de um adolescente de dezesseis anos, que pela definição do Código Civil não detém capacidade plena.
Entretanto, há situações, ao contrário das primeiras, em que a responsabilidade civil do médico somente poderá ser extracontratual, em que as implicações jurídicas serão completamente distintas. Nestes casos estão incluídas as ações ilícitas de um médico, como, por exemplo, quando autor de aborto não legal.
Apesar de não ser agradável à maioria dos médicos, a relação médico-paciente, no aspecto jurídico, assume contornos de relação de consumo, passando, assim, a ser tutelado pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC) . Ao analisarmos os artigos 2º e 3º do CDC, percebemos que o paciente se enquadra no conceito de consumidor e, o médico, no de fornecedor de serviços.
Assim, quando lícita a atividade médica e, presentes todos os pressupostos de um negócio jurídico, será contratual o vínculo médico-paciente. Teremos uma relação de consumo e, por conseguinte, a aplicação do CDC. Caso contrário, estará afastada a tutela do CDC, podendo ser invocado o Código Civil.
Autor: Dr. Claudio Barsanti
Diretor – Diretoria de Defesa Profissional da SPSP – gestão 2007-2009; Presidente do Departamento de Defesa Profissional da SPSP – gestão 2007-2009; Médico Supervisor da UTI do Hospital Santa Marcelina, SP; Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito Mackenzie
Texto divulgado em 21/08/2007.