“A roda dos expostos”
“(…) rogo a Vossa Mercê queira ter a bondade de mandar criar este menino com todo o cuidado e amor (…); é este menino filho de Pais Nobres e Vossa Mercê fará a honra de lhe criar em casa que não seja muito pobre e que tem escravas que costumam criar essas crianças (…)”. (Este bilhete foi deixado junto a uma criança enjeitada, 1760).
Fonte: infanciadobrasil.com.br/
A instituição da roda, conhecida como “roda dos expostos”, era comum em todas as possessões ultramarinas portuguesas e também em outros países da Europa. O acolhimento de enjeitados foi regulamentado desde o século XVI nas Ordenações Manuelinas. Era obrigação das câmaras municipais acolher as crianças abandonadas, dividindo a responsabilidade com as Misericórdias em Portugal. Inclusive, as câmaras poderiam lançar impostos sobre a população, para que custeasse a criação de todos os expostos até que completassem sete anos de idade.
Durante o período colonial brasileiro, o abandono de crianças nessas rodas, em grande parte, envolvia questões de adultério (muitos recém-nascidos, de gente com posses, foi deixada nesse local por uma questão de vergonha, para ocultar um “delito moral” e “capital”, sob o prisma da religião). As crianças eram deixadas com um bilhete constando o nome, para que fosse feito o sacramento batismal prontamente. Temia-se que, sem sua realização, caso a criança viesse a morrer, ela não alcançaria o paraíso, preocupação que fazia sentido numa sociedade profundamente marcada pela religiosidade católica.
As primeiras “rodas dos expostos” no Brasil foram construídas ainda no século XVIII – na Bahia, em 1726 e no Rio de Janeiro, em 1738. A mortalidade entre as crianças expostas era alta, por falta de higiene e de alimentos nos abrigos. As sobreviventes eram alocadas em famílias que recebiam pagamento da Misericórdia, em troca dos cuidados até os sete anos. Depois disso, a criança pagava sua estadia com o trabalho.
A roda é uma espécie de tambor giratório, com uma abertura que permite uma comunicação entre a rua e o interior do edifício. A criança ali depositada era recolhida por alguém do interior do mosteiro ou de uma casa. Ao soar da campainha a roda girava, sem que quem estivesse dentro pudesse ver quem deixara a criança. O anonimato era garantido. Ressalte-se que a Casa dos Expostos e a Roda dos Expostos não estavam necessariamente juntas, podendo haver rodas em casas comuns, que acolhiam expostos e enviavam, posteriormente, as crianças ao estabelecimento responsável.
No Brasil colonial, a mortalidade de crianças abandonadas pelas ruas era muito grande. Segundo relatos históricos, as crianças eram expostas nas portas das casas dos moradores, nas portas das igrejas, em lugares sujos, algumas morrendo atacadas pelos cães ou pisoteadas pelos animais de carga. Algumas eram deixadas nas praias, para que se afogassem na maré alta. Outras morriam de fome.
Abandono e rejeição de crianças perpassam toda a história humana. A criança nem sempre foi vista como um “sujeito dotado de direitos”, nem sempre foi objeto de “proteção”. Pequenas ações, como esta da “roda dos expostos”, apareceram aqui e ali, mitigando a mazela, sinalizando, também, que a compaixão é um sentimento humano, também, pulsante.
Hoje, evoluímos. Temos o “Estatuto da Criança e do Adolescente”, citando apenas um único exemplo. Temos, também, um robusto arcabouço jurídico consensualizado. Temos fóruns de discussão sobre a adoção. O Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA) foi criado em 2019 e o Comitê de Apoio ao Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento, instituído pela Portaria SEP n. 10 de 17 de junho de 2021, é o responsável pela gestão do SNA*.
Muitas “rodas”, hoje, estão tentando girar o sistema de proteção e acolhimento da criança abandonada. Chegam dia a dia mais crianças. No sentido contrário, as famílias dispostas a recebê-las, surgem em número menor. O tempo para finalizar um processo de adoção ainda é longo. Essa “distocia” é observada pela criança albergada, que continua seu ritmo natural de crescimento. Ela olha com atenção e ansiedade. Algumas conseguem uma família que as receba como filhos(as) queridos(as). Uma boa parte, entretanto, segue esperando. O tempo que não se detém, também segue seu curso. Algumas dessas crianças, nesse diapasão verão a infância passar, sem experimentar laços de afetos necessários e fundamentais para o seu desenvolvimento integral.
Dia Nacional da Adoção – uma oportunidade para reflexão e sensibilização.
Saiba mais:
CNJ – Conselho Nacional de Justiça. Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/adocao/
Relator:
Fernando MF Oliveira
Coordenador do Blog Pediatra Orienta da SPSP